quarta-feira, 31 de agosto de 2022

Os sinos nunca tocaram

 



Uma história pitoresca, porém ao estilo Camus.

Vinte e três anos atrás, nos conhecemos.

Sua paixão brotou sem que eu soubesse. Sua vida seguiu sem que eu percebesse. Entre casamentos e separações, eu sobrevivi na sua mente como “é ela”. Então, você ressurge assim, brotando da terra fértil do planalto central, me trazendo um presente: você.

Narrou nossa história em que eu, embora protagonista, me senti mais uma coadjuvante – não fiz nada além de existir – mesmo inconscientemente – na sua memória.

A verdade, veja, é que tudo não passou de vida.

Não houve sinos tocando quando me viu pela primeira vez – embora você inutilmente acreditasse ter ouvido. Era tudo coisa da sua cabeça adolescente.

As borboletas, você bem sabe que não têm como habitar nossos estômagos. Não alimente esse tipo de ilusão.

Isso tudo é somente a vida, assim, cheia de fatos que insistimos em significar com significados inexistentes. Conjecturas de contos de fadas que queríamos que fossem reais.

Persiste nossa tão arraigada mania de querer ver mágica onde há vida e nossa insistente negação de que a vida por si só é mágica, mesmo sem histórias encantadas.

Apenas grave isso com seu presente: os sinos nunca tocaram. Nunca.

 

Gabriella Mochizuki de Oliveira


quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Invisível

Mais uma vez, sou invisível.

Olho pro outro e vejo a gente juntos, tão encaixados que me tira o ar.

Me sinto feliz e satisfeita.

Mas quando falo, não sou compreendida. Quando sorrio, não sou vista. Quando preciso, passam adiante. Eu não existo.

Me lembro das vezes em que fui vista. Vezes em que desperdicei o olhar do outro ou que o destino não me permitiu vivê-lo.

Me pergunto quando serei vista, observada, vivida. Será?

terça-feira, 26 de maio de 2020

Eu amo demais.
É isso. Saiu assim, como um clarão no meio dos pensamentos da madrugada.
Entre memórias, sonhos e reflexões, senti o "a-há" a ponto de eclodir do fundo da minha garganta. Mas me contive. O horário não comportava tamanha emoção. Fiquei ali, com o pensamento preso. Então era isso. Eu amo demais.
Amo gentes que nem sabem que eu existo. Amo gentes assim, em mão única, e me sinto bem feliz com isso. Acho graça de quando as palavras de elogios deslizam suavemente pelos meus lábios, palavras sinceras que expressam meus sentimentos, e o outro fica me olhando com cara de paisagem, como se se sentisse constrangido porque não pode e nem quer falar "eu também".
Na verdade, o outro realmente se sente, em regra, constrangido.
Então eu sinto, sinto muito por ter deixado fluir palavras tão densas assim, sem que o outro pudesse devolvê-las no mesmo tom.
Mas faço o que, se amo mesmo? E faço o que, se meu amor é assim, um tiro reto, sem espera de resposta!? E faço o que se mesmo as respostas que espero, espero-as assim, sem vigilância?

domingo, 3 de maio de 2020

Tuas mãos no meu pescoço, apertando a carne estranhamente me ligava à minha natureza mais hostil. Não havia medo ou insegurança, mas entrega. Quanto mais a palma da tua mão tomava coragem para agarrar a minha pele fina, mais eu entrava em contato comigo mesma, com uma vulnerabilidade estranhamente desejada. Você, num primeiro momento, estranhou e se conteve. Precisou de alguns claros pedidos em gesto para tomar coragem e se entregar ao sentido mais primitivo que pulsava no teu sangue. Olhos cravados no espelho, como tuas mãos na minha carne, largando o pescoço e sentindo cada centímetro do meu colo. Meus seios já não eram mais importantes do que o resto do meu corpo, que pulsava ferozmente numa névoa libidinosa insaciável. Meus ombros eram tão eróticos quanto meu feminino mais íntimo. Meu pescoço, tão saboroso quanto meus mamilos. Eu era, da ponta dos pés aos fios de cabelo, toda energia, toda sexo, toda desejo. Enquanto tu, senhor daquele espaço, era tudo o que quisesse ser. 

sexta-feira, 10 de abril de 2020

Eu ainda não sei se quer dizer que está com saudade, se quer dizer que não me esqueceu ou se simplesmente foi um acaso. Daqueles acasos nossos, eu sei, que surgem de uma íntima sintonia, mas sendo ainda mero acaso.
Seja o que for, saiba que eu sorrio toda vez que vejo que passou por aqui.
E meu sorriso é ainda melhor e mais gostoso quando meu imaginário acredita que, por um sinal, você fez questão de registrar sua presença.

domingo, 29 de março de 2020


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segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Se você soubesse o quanto você me dói, talvez não teria encostado em mim uma segunda vez sequer.
Não que me amasse tanto a ponto de não me querer sofrendo, mas por piedade, por dó.
Te tocar era como tocar minhas entranhas ensanguentadas em carne aberta, rasgada.
Era encostar no meu eu mais íntimo, sagrado, na minha própria essência, na chama da minha vida, ao mesmo tempo em que expunha meu corpo à morte, ardendo em febre e jorrando sangue pelos poros da pele, derretendo feito cera em candelabro.
Era vício que corroía, que matava aos poucos minha esperança e meu auto-amor, mas cujo prazer, eu cria, compensava.
Por você e em você eu descobri minhas piores sombras. Vi a minha ira crua. Vi minha luxúria se esbanjando em ilusões. Vi minha gula insaciável. Minha vaidade virulenta, inflamada. Vi minha preguiça abraçada com a covardia, que eu nem sabia que tinha. Vi minha avareza ao ignorar o sagrado que me gritava. Na inveja, eu me afogava.
Me vi masoquista e sádica.
Cada nosso encontro era coberto de prazer e sofrimento. Um choro seco em cada gota de suor que exalávamos.
Te via buscando meus olhos enquanto eu fugia. Eu tinha certeza de que me encontraria nos seus e isso me amedrontava. Eu era você e você também era eu. E se eu me encontrasse nesse poço abismal que não sabia sequer que eu existia? Talvez eu me perdesse na escuridão do nosso quarto.
Mas eu estava ali, sempre. Buscando meu prazer dolorido. A queimadura que eu insistia em aumentar, dia após dia, vagando na sinergia que nos mantinha ali, estranhamente unidos.
Talvez você soubesse, sim, da minha dor. Talvez não teria parado de me machucar mesmo se eu te contasse o quanto eu sofria. Mas não porque você era sádico como eu, mas porque nessa minha dor, você fundia a sua própria dor. No meu sofrimento mudo você descansava o seu. Na sua falta de amor por você mesmo, você encontrava a minha própria falta de amor por mim. Na minha covardia você encontrava a sua. Talvez, só talvez.
Hoje percebo que nunca foi amor. Sempre foi dor. Muita dor fundida, misturada.
Desejo - muito pouco praquilo tudo. Eu queria estar enganada.
Amor universal foi a expressão encontrada por nós pra falar da nossa desistência de nós.

- 2019