Deixa ser
A casa desarrumada demonstrava muito mais que sua desorganização
espacial, segundo os sábios, donos do óbvio, que diziam refletir sua vida desestruturada:
relacionamentos abandonados, discussões deixadas por sorrisos inconclusos,
filhos sem pais. Era tão óbvio!
Ela era uma pessoa toda torta: das pernas às atitudes,
passando pela boca. Toda desencaixada. A vida parecia patinar feito carro atolado.
Os sonhos permaneciam no coração, como que esquecidos. Seu olhar se resumia a
desculpar-se por existir.
Num belo dia, tudo deu errado. Perdeu a hora, perdeu a
carona, perdeu o caminho, perdeu o vôo e perdeu o amor.
Lindamente, perdeu o óbvio.
A casa desarrumada demonstrava, agora, muito mais que sua
desorganização espacial. Era sentar-se no chão, ao lado da cadeira, porque o
chão era muito mais confortável. Era olhar a toalha molhada, gostosamente pendurada
na maçaneta da porta. Eram seus livros em cima da mesa, porque amanhã teria que
tirá-los do armário de novo! Era concentra-se em resgatar seus sonhos dos
umbrais do esquecimento e ir substituindo-os à medida em que passavam de fase.
A liberdade da escolha invadiu-lhe tão completamente, que
achou bonito até o oposto, porque lhe cabia ser o que era. E aprendeu, perdendo
o óbvio, que a singeleza do deixar ser.
Deixa ser bom, sabendo aproveitar. Deixa ser
ruim, sofrendo cada dor. Deixa ser desorganizada, com a calcinha em cima da
mesa. Deixa ser sistemático, com as camisas do guarda-roupas separadas por cor.
Deixa ser gostoso, ainda que fugaz. Deixa ser fugaz, ainda que o final
machuque. Deixa machucar e sarar naturalmente. Deixa terminar. Deixa recomeçar.
Deixa começar o novo. Deixa doer. Deixa amar, ainda que não seja verdade. Deixa
trair, se é necessidade. Deixa beber, se vai fazê-la bem, ou mesmo que lhe faça
mal. Deixa nascer e deixa morrer. Deixa comer, mesmo que se queime de
arrependimento. Deixe inconclusas as discussões, se assim lhe apetecer. Deixe-se
abandonar e ser abandonado, quando não houver mais prazer. Deixa ser, porque deixando,
sempre se estará do lado certo. Deixa ser, porque é tão lindo ser! E, principalmente,
deixa ser, porque deixando ou não... vai ser.
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