“Não dá mais”, concluiu Ana, fria e inatingível. José a fitava silenciosamente. Ela virou as costas e saiu. No caminho para casa, avistou uma floricultura. Comprou um cacto.
Ao chegar, encarou a rosa que José lhe dera no dia anterior, flutuando numa garrafa escura. Aquele era um costume que ele mantinha desde que se conheceram: entregava-lhe uma flor quando se encontravam, sempre. Ela recebia e a encostava em qualquer lugar. Na primeira oportunidade, José a resgatava e a acolhia numa garrafa com água.
Ana nunca entendia o porquê de José insistir naquilo. Ana era prática, racional. Por vezes, áspera. O destino daquela flor era morrer. Cedo ou tarde. Numa garrafa ou num plástico, embrulhada. Pra quê estender aquela vida insignificante, patética (como, aliás, o mundo inteiro lhe parecia)?
Ana acreditava que tudo devia seguir seu curso natural: seres humanos são poligâmicos; por que insistiria na fidelidade? Seres humanos necessitam criar seres superiores para terem em quem se apoiar, embora nunca se provara a existência de qualquer divindade; aceitar a fraqueza humana era o caminho mais fácil para a vida. Não rezava, já que tudo aconteceria como deveria acontecer, ela querendo ou não, rezando ou não. Seres humanos são egoístas e medíocres (o que a incluía); por que esperar amores perfeitos de seres imperfeitos? Pra quê sonhar, se sonho e realidade jamais se tocariam!?
Desfazendo-se da garrafa, com água e flor, substituiu-a pelo cacto. Era bonito, verde, não exigiria cuidados e viveria por mais que dois dias. A insignificância era a mesma, aliás.
Ana tinha a mania de resumir a existência de todo e qualquer ser: a flor, o cacto, José. Ela mesma. Naquele momento, Ana resumia o cacto a algo quase inexistente e à flor, totalmente, assim como José. Ela apenas assistia ao mundo.
Cansada de tantas lamúrias alheias, adormeceu jogada em sua cama, encarando o cacto que se portava silencioso e tímido no criado mudo.
Ao acordar, uma misteriosa rosa do deserto a encarava, em substituição ao cacto.
Assustada, leu o cartão que pendia da flor: “Não deixe de ser rosa para ser cacto. Na impossibilidade de ser frágil, torne-se a mais bela, resistente e imponente rosa, nesse deserto de áridas almas humanas. Prolongar uma vida só até amanhã pode ser suficiente, já que 'amanhã' pode ser muito tempo!"
Ele manteve o hábito, apesar de.
Desse dia em diante, milagrosamente, aquelas flores foram transformando algo em Ana, que passou a cuidar das rosas que lhe enviavam silenciosamente. Colombianas, rugosas, virginianas... e, claro, aquela rosa do deserto, Adenium Obesum, que sobrevivia às intempéries ostentando, também milagrosamente, a singeleza e a beleza, inerente a toda rosa.
Ao sentir o primeiro murchar de uma de suas flores, sentiu tristeza. Sentiu "a" tristeza. Ao ver o primeiro desabrochar, sentiu a felicidade invadir seu rosto, num sorriso singelo. Ao ver as cores que as flores exprimiam em seu curto existir, Ana ficava contente. Quando se sentia triste, o perfume exalado a fazia se acalmar. Aos poucos, permitia-se compreender e sentir a efemeridade, com seu começo, meio e seu fim.
Deixou um cartão com o entregador das flores: "Por favor, que a próxima venha num vaso com terra! Não suporto mais vê-las, tão frágeis e belas, morrerem em minhas mãos impotentes!"
Recebeu, então, um vaso, aparentemente vazio. Olhos arregalados e sobrancelhas arqueadas, agradeceu ao entregador. Um cartão cravado na terra dizia, apenas: "Paciência, amor, paciência!"
Com paciência, amor e paciência, Ana aprendeu a cultivar suas rosas, proporcionando-lhes seguidos amanhãs.
Com paciência, zelo e dedicação, aguardou ansiosamente nascer daquele vaso mais uma bela rosa do deserto.
Com paciência, amor e esperança, aprendeu que todo o esforço para ver nascer mais um "amanhã" era glorioso.
Com José, aprendeu que "amanhã" podia ser muito, muito tempo.
Com paciência, amor e esperança, aprendeu que todo o esforço para ver nascer mais um "amanhã" era glorioso.
Com José, aprendeu que "amanhã" podia ser muito, muito tempo.
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