Nunca me senti parte desse mundo. Sei que não sou a única. Sei, também, que não é o mundo todo que se sente assim. Não que eu imagine que só existam duas classes de pessoas: os que sentem-se pertencer e os que sentem-se flutuar. Deve haver outros tipos, mas na minha pequenez, consigo enxergar apenas eu e o meu oposto. A sombra delimita a luz. O silêncio delimita o som. Eu delimito o que não sou.
Na infância, apenas sentimos e assistimos. O que nos parece aceitável, incorporamos, absorvemos. O que não é compatível conosco, refutamos. Na próxima fase, inicia-se o momento das expressões. Identificamos, então, aqueles que flutuam observando neles duas características quase antagônicas, mas intimamente relacionadas: ou exagera-se nas ações, comportando-se de modo excêntrico, eclodindo no universo, como se não seguir o resto do mundo fosse um grito de liberdade; ou exagera-se nas omissões, apático ao mundo, evitando ser visto, como se aceitasse essa segregação silenciosamente. Em ambos casos, há sofrimento.
Adultos, chega-se à fase mais crítica de nossas existências.
Torna-se nítido o precipício existente entre o que somos e o que a sociedade espera de nós. Com certa consciência sinestésica, torna-se nítido, também, que a sociedade é um conjunto com regras, cheiros, construções e sentimentos próprios, enquanto nós... simplesmente não somos ela. Temos regras, pensamentos, cheiros, sons, construções, sabores e sentimentos também próprios. Somos indivíduos alheios. Somos outro.
Muitos flutuantes, numa rebeldia gritante, rompem a pouca ligação consciencial de pertença que existia (a necessidade social de pertencer; diferente do sentimento de pertença nato) e partem para desbravar o universo. Muitos abandonam lares e colecionam experiências de mundo, de vida sem, contudo, fixar-se nas regras do cotidiano social, muitas vezes mal suprindo as próprias necessidades.
Essa rebeldia é apenas um dos possíveis caminhos. Outro, que suponho o mais difícil, é justamente o oposto. É o “apesar de”. É o “embora”. É o “mas”.
Sem qualquer sentimento nato de pertença, percebe-se que se vive nesse planeta. É fácil raciocinar que, se consciências tão variadas coexistem, há uma natureza idêntica que permite tal existência simultânea num único plano.
Resigna-se com as discrepâncias e percebe-se que só nos resta viver. Aprende-se, então, a conviver. Suporta-se as regras, mesmo que tolas. Suporta-se ações ilógicas, reações insensíveis. Suporta-se pensamentos que se opõem não só ao seu, como à própria existência. Suporta-se o sofrimento do outro pela alteridade. Suporta-se seu próprio sofrimento pela igualdade. Suporta-se o sofrimento, também, pela necessidade premente, mas trágica e, em regra, contida, de romper com as fronteiras do ser, deixando-se de ser.
Em seu turno, abdica-se dos gritos e das revoltas e vive-se observando, absorvendo o que nos apraz e refutando-se silenciosamente o ônus, tratando de proteger o coração e a consciência das dores, temores e tumores, pelo exercício da seleção.
A vida, com seus percalços e suas surpresas, muitas vezes nos direciona a essa percepção. Fixa-nos ao chão, impedindo-nos de flutuar e, ainda que o sentimento de pertença não nos invada, aos poucos percebemos que a sociedade é uma ideia, assim como suas regras. A inteligência alheia, percebemos, não é parte desse todo. E o todo, nada mais é que o planeta, inconsciente de si, ostentando tão somente sua existência, em sua constante rotação.
É então que passamos a compreender o pertencimento de um modo diverso. Passamos a entender que o todo que refutamos é tudo, exceto nós. Por outro lado, todos os outros seres vivos, principalmente os conscientes, são inteligências individualizadas que, no máximo, sentem pertencerem-se, embora não sejam o universo. Acontece que, a partir do momento que se sente pertencer, automaticamente, são. Parece paradoxal, e é. Mas um paradoxo que coexiste, já que, no nosso menor, animados ou não, somos iguais que se misturam, se fundem. Somos um.
Aurindo dessa compreensão, o verbo “suportar” perde a natureza de ônus e ganha conotação de superação. A compreensão traz consigo o sorriso e a paz. E assim, mesmo sem sentir que pertencemos, passamos a aceitar que pertencemos, que somos, querendo ou não.
Aos poucos, percebemos que o sentimento de pertença é encontrado na empatia, que se esconde na mais profunda intimidade das relações entre todos os seres do universo. E assim, compreendemos, instintivamente, Gaia, a existência holística que somos.
(frô)