segunda-feira, 14 de maio de 2018

Uma carta

Em mais uma tensa semana que antecede o dia das mães, me pediram uma foto em que eu estava grávida.

Busquei nos álbuns de pouco mais de uma década e encontrei. Encontrei várias fotos em que eu exibia uma barriga imensa, com meus vinte e um anos de idade. Fotos em que tentamos captar um pouco daquela magia; fotos felizes, em que ambos, tão jovens, estávamos ansiosos por algo que, em verdade, parecia que não ansiávamos.

Passei por algumas fotografias, pensativa, até que me deparei com uma em que estávamos, nós dois, na beira da praia.

Eu acariciava seus cabelos, sentada numa cadeira e você no chão, apoiado nas minhas pernas, com um instrumento nas mãos. Tínhamos dezenove, ali. Me lembrei da viagem, das risadas, da vida naquele tempo.

Nem com um milhão de dicas poderíamos imaginar quanta coisa ainda nos suscederia, juntos e separados.

Esses dias, me perguntaram se me casei pela segunda vez porque engravidei. A resposta foi afirmativa, sendo completada por um pesaroso "tinha que tentar, pelo meu filho."

Com você, não. Eu não tinha que tentar nada. Eu não tentei nada. Nós não tentamos nada.
Nós apenas quisemos e fizemos. Nós apenas vivemos a saga de construir uma família feliz, aos vinte  anos.

A gente não sabia que precisava de mais que vontade pra alcançar esse objetivo. Hoje me parece tão injusto a sociedade nos pressionar a casar na casa dos vinte, quanto fazer um jovem de dezessete escolher uma profissão no vestibular.

Precisei sair de dois casamentos pra perceber que, antes de qualquer coisa, necessitamos de maturidade. Me vem à mente aquele texto de Chapplin, que sugere à vida acontecer ao contrário.

Maturidade deveria ser inata, pra nos conhecermos a nós mesmos desde sempre. Saber o que nos é essencial, o que pode ser tolerado, o que é inaceitável.

Então, ainda a maturidade nos possibilitaria escolher o outro e deixarmos ser escolhidos.

Mas a realidade não é bem essa. Se a gente nem se conhece a si, como é possível conhecer o outro? Foi então que aprendi a me perdoar, a nos perdoar por não termos sido pra sempre.

É preciso, ainda, tanta coisa! Coisas que a vida vai ensinando, mas a gente só aprende depois, que já não dá mais tempo de consertar. Tem lição, aliás, que fica atravancada no tempo, feito vírus encubado, esperando que tenhamos maturidade pra entendê-la.

Nessa brincadeira, que envolveu eu, você, nossos filhos e familiares, a gente foi recebendo lições sobre vários temas. Muitas soubemos aproveitar a tempo. Outras (maioria), são intempestivas pra nós, mas certamente serão úteis para aventuras próximas.

Nos ensinaram sobre amizade, companheirismo, cumplicidade. Respeito, fidelidade e lealdade. Sobre somar e sobre dividir. Ceder e exigir. Planejar, sonhar, persistir, insistir e desistir.

Tivemos licões sobre humildade, sinceridade, sexo, carinho, animosidade, presença, paciência, dedicação, ausência, ciumes, desconfiança, certezas.

Ainda naquela época, aprendi que cada pessoa tem sua vida e sua história, mesmo antes da vida e mesmo pra depois dessa.

Não adiantava eu querer proteger as crianças se os aprendizados de que eles precisavam envolvessem sua ausência. Ausência, aliás, opcional, voluntária, que só me mostra que a lição sobre presença você ainda não captou.

Não adiantava querer protegê-los se fazia parte do aprendizado deles, lidar comigo assim, nesse aprendizado solitário.

Não adiantava eu suportar, querendo te proteger, se você só cresceria longe de mim.

Ainda naquela época aprendi sobre companhia. A gente gostava de estar um com o outro, mas aos poucos, nos conhecendo melhor, fui percebendo que eu gostava ainda mais de outras companhias. Se eu conhecesse da minha necessidade por diálogos profundos, certamente não teria te permitido entrar nessa fria.

Aprendi também sobre parceria. Eu ainda não entendia o que ela era, mas entendia que não era só estar junto, rir junto, dar a mão nos momentos difíceis e curtir momentos bons. O nome disso era amizade. Essencial, também. Mas parceria era outra coisa. Só depois do segundo casamento é que compreendi, sendo parceira sem ter parceiro, que essa palavra exige muito dos dois lados. Exige planos feitos juntos e mão na massa. Exige gritos de incentivo, ou beijos e toques. Exige cessão. Exige firmeza. Exige dos dois, construção. No nosso caso, você e eu tínhamos pensamentos tão distintos que era impossível a parceria. Nossos relógios andavam descompassado.

No meu segundo casamento, o egoísmo reinava. Não há parceria quando apenas o sonho de um é importante, nem quando apenas um luta pra construir o sonho dos dois.

Hoje creio que eu estava estavauivocada, quando defendia que não era necessário que os dois colaborassem proporcionalmente, que bastava cada um dar o que podia. Não. Na parceria, se um pode dar menos de força, tem que compensar com psicológico. Se tem menos de suor pra dar, tem que dar mais em outro aspecto. Tem que ter esforço significativo dos dois, preocupação, importancia, sangue, garra. Não é parceria se me desdobro em mil e o outro faz tão somente seu possível.

Ainda naquela época, aprendi sobre cumplicidade, porque não tínhamos. Ainda não sei explicar sobre essa palavra, porque nunca a vivi. Mas pelo que tenho assistido, suspeito que ela tenha relação com parceria, respeito e amor. Suspeito que seja o selo de muitas uniões bem sucedidas.

Mas foi só depois de decidir andar sozinha, que aprendi que algumas coisas são essenciais num casamento. Outras, são batidas como necessárias, mas são supérfluas, pelo menos pra mim.

Sobre a liberdade, aprendi sobre sua essencialidade exercitando a minha. Sobre a confiança, aprendi que é mais consequência do que causa. Amor não é sentimento. Fidelidade tem mais a ver com vida do que com sexo. Dinheiro não é tudo, mas é muito. Tesão é diretamente proporcional à admiração e ambos são essenciais.

Aprendi que o que é meu, é meu, não é nosso. O que é do outro, é do outro, não é nosso. O que é nosso, sim, é nosso, e deve ser tratado como tal. Essas regras, aliás, valem pro dinheiro, pros sentimentos, pras histórias, pros desejos, necessidades, sonhos e projetos.

Reconhecer a importância da individualidade é essencial. Respeitá-la, alimentá-la. Deixar o outro ser o outro, sem deixar de incentivar suas mudas, evoluções.

Lembro-me de que sempre ouvia que hoje, nos amávamos mais que ontem; e que amanhã nos amaríamos mais que hoje. E no dia em que percebi que isso não acontecia, fui acreditando que algo estava errado.

Mal sabia eu que a gente é assim mesmo. Que hoje, ama assim e amanhã ama diferente. Depois de amanhã, volta a amar como se fosse a primeira vez. E que depois, a gente nem ama. Mal sabia eu que o ser humano é oscilante porque é cíclico, é hormonal e é complexo. Tudo faz parte e é  questão de paciência, compreensão e arte.

Eu não entendia que amor é produto e não matéria-prima. Que é conjunto e não um coração vermelho.

Volto à nossa fotografia. Sorrio. Agora, olho pra gente e não me sinto triste, nao me arrependo de nada; nem do começo, nem do meio nem do fim. Respeito tudo o que vivenciamos, com amor e gratidão. Não sei se você também pensa assim, mas cada um tem seu tempo e seu caminho.

Com você, me dispus a viver. O resultado disso não foi a felicidade do pra sempre, mas aprendizados lindos que me tornaram e tornam quem sou.

Com você, não tentei. Com você, eu vivi e foi lindo.

Se daríamos certo hoje? Acho que não. Hoje acredito que você não era pra mim e nem eu, pra você.

Sou grata por tudo o que passamos e mesmo pelas lágrimas que derramamos; pelas lições que aprendemos, pelas tantas que entendi só depois de muito tempo e por outras que sei que ainda virão.

Sou grata por termos exercido nossa liberdade de nos casar, de nos separar e de recomeçar longe um do outro, mas juntos de outros. Obrigada.

quarta-feira, 2 de maio de 2018

Sonho























[Sonho]

Eu vomitei um astrolábio.

Nas palmas de minhas mãos, 
Imenso, reluzente, ele jazia.

Não sei o que tramava,
Indigesto, inútil,
Dentro de mim.
Era grito pras entranhas surdas,
Verso pras analfabetas sensações,
Seta pros meus órgãos cegos,
Conversa pro meu sangue mudo.

E eu, privada dos sentidos,
afogada em incertezas,
Persistindo na decisão tomada
Tomando goles e mais goles de amarguezas. 
Tomada pela certeza fria
Do erro que me entorpecia,
Ruminando e me acostumando
Feito gado no pasto;
Aguardando,  sem saber, sabendo,
Acovardada, acomodada, amedrontada,
Uma felicidade que viria
Mal eu sabia, só com o pó.

Mas aqui dentro?
Por que foi que engoli essa porcaria?
Quando? Como?
De que é que eu fugia?
Recebi esse astrolábio justamente
Pra evitar a perda de tempo
Nas idéias erradas da vida
Nas flores belas fingidas
Nos casebres charmosamente sem teto.
Ele vinha pra lembrar
Que onde não florescer,
Não se deve quedar.

Coração é iletrado, não tem nada
Que ver com astrolábio. 
Coração canta, mas tem que cantar baixinho
Pra não atrapalhar o que se tem que pensar.
Agora, em minhas mãos, retomo a trilha
Tomo garrafadas de persistência,
Coragem e paciência
Pra não desistir no caminho
Até lugares onde eu possa sentir
Onde não precise insistir
Onde simplesmente
Eu mesma seja lar.