quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Certezas

O rosto escondido 
nos seus ombros.
Os braços segurando 
os seus braços.
Um aconchego
estranho porque novo.
"Está tudo bem"
inspirando você diz
"Sempre"
se completa ao expirar.

Em você,
cheiro de casa.

As pálpebras,
pesadas no acalanto.
Certezas pairam 
no meu peito.
Certezas inconsequentes
encorajam.
Certezas pacíficam
o meu leito.
Certezas me sorriem
e pedem calma.
Certezas, eu sei,
que eu nem tenho.
Ou se tenho,
Sei lá
Se são certezas.
(Frô)

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

E na explosão de sentimentos, pensamentos,
planos e ilusões, o coração se perde.
Atordoado, se entorpece.
Letárgico, quieto,

dorme.
(frô) 

terça-feira, 10 de novembro de 2015


Sonetinho dos amores de verão (inverno, primavera e outono tb!)

Planos, sonhos, dores e amores.
Toda uma vida
em três, quinze, trinta dias. 

Amores pré-pagos;
começos, meios e fins
devidamente marcados.

Sem choros, convulsões,
verdades concretas, mentiras, 
expectativas, explicações.
Tudo, tudo, sorte!

E passado o tempo
vem ela, prematura e serena, 
solitária e esperada,
a Senhora mais bela: a morte! 

(frô)

terça-feira, 27 de outubro de 2015

Querida B-ju, a pequena borboleta.

Sei que anda ansiosa, por ainda não saber qual a cor que suas asas vão tomar. Vou dar um palpite: desconfio que serão multicoloridas, com mais cores que o arco-íris. Você é uma borboleta de sorte!

Imagino que esse momento seja um tanto doloroso. Romper o casulo e irrigar as asas não deve ser tarefa fácil. Eu, como pássaro que sou, já nasci com minhas asas cor de anil; não passei por esse momento (ou seria tormento?). Desde muito nova, voava no céu azul. Preferia os céus sem nuvens, claros, sem os mistérios assombrosos da neblina, sem a escuridão regada pela fria lua.

Já você, logo iniciará seus vôos. Verá que suas melhores e mais incríveis descobertas em terra eram meros experimentos para a nova realidade que exsurgirá à sua frente. O mundo, la em cima, é bem diferente, cheio de sensações que certamente vão fazer você perceber como é abençoada por ter asas, por ser uma borboleta!

Quanto a mim, reparou bem. Não sei voar. Não mais.

Vou te contar uma pequena história da minha vida.

Nasci nas alturas, com asas fortes e bem estruturadas. Vivia voando de norte a sul. Às vezes, pousava sobre o telhado de algumas casas e ficava lá, observando, descansando minhas asas sobre as cabeças de seres que as não tinham. Vi nosso querido Sol nascendo e se pondo de ângulos que você jamais imaginou, com cores que nem mesmo os grandes artistas conseguiriam expressar. Vi luas sorrindo e luas sangrando. Vi estrelas nascendo e vi estrelas morrendo. Tive medo e regozijo nos céus de cores alaranjadas.

Certa vez, senti uma perigosa atração por uma dessas nuvens densas e cinzentas. Mais tarde saberia que ela, a atração, era física. Esse tipo de nuvem emite uma energia tal que atrai os pequenos e indefesos pássaros. Mas até então, eu desconhecia esse fato. Assim que entrei, não consegui mais sair. O atrito entre as moléculas – como eu disse, é física pura – produz energia, que queima, eletrifica. Me vi presa de nuvem, dentro dela, que me matava aos poucos. Num dia claro, rezei. Pedi que meu Pai Sol, que ilumina todos, me iluminasse também. Ele me atendeu de imediato e fez aquela nuvem se desfazer. Eu, já sem forças, não consegui voar. Cai com a chuva. Ao acordar, senti dor. Minhas asas estavam quebradas.

Há seres, minha cara borboleta, que não precisam de encontros para voar. Precisam, sim, de asas sadias, como eram as minhas. Eu, e com isso quero dizer “eu sozinha”, me bastava para belos e maravilhosos vôos. Particularmente, o encontro quebrou meus finos ossos, ao invés de me libertar.

Muitas vezes tentei consertá-los. Tentei substitui-los por pedaços de pau. Tentei até que um ser humano cortasse minha pele e os colasse, com cola, mesmo. Tudo em vão. Por isso, agora, contento-me na contemplação. Meus vôos acontecem no meu céu interior. Tive que aceitar essa realidade e aprender a viver assim, se quisesse sentir o gosto, mesmo que encapsulado, da felicidade.

Ao receber sua carta, preparei-me para convencê-la de que voar pode ser muito perigoso.

As borboletas, não sei se você sabe, podem voar a pouco mais de mil metros de altura. Poucas se arriscam, por inúmeros motivos, como o medo do chão e o medo do Sol. Se minhas asas se quebraram, foi também porque me arrisquei demais. Não tive medo da assombrosa nuvem cinza. 

Não te pedirei que não voe o mais alto possível, contudo; peço que se afaste dessas nuvens que te trazem sensações físicas inexplicáveis (agradáveis ou não). Isso porque temos no mínimo mais dois corpos, além do físico, que é o mais denso. Satisfazendo-o, ainda restarão outros dois esfomeados. Cuide para que possa agradar aos três.

Quanto ao chão, não tenha medo. Dele não passará e a ele retornará. Já o Sol – ah, o Sol! – cuidado! Você sentirá suas asas trepidarem se chegar perto demais. Vá até o seu limite. É bem perto dele que você verá as mais belas paisagens e terá as mais importantes experiências. Como eu disse, são poucas as ousadas. Você certamente será uma dessas.

Mas olhe! Se um dia eu tentar te convencer que o amor não existe, lembre-me que minhas asas quebradas são provas de que mesmo no engano, o amor vive na reles existência, ainda que não em sua finalidade. Lembre-me, também, que sem aquela densa nuvem, sem aquela terrível queda, sem a inesquecível dor dilacerante da fratura, eu jamais teria aprendido o valor dos valores.

Em fim, cara borboleta, se voltarei a voar ou não, não sei. Do jeito que avança a medicina da alma, talvez ainda seja possível, um dia. 

Certamente estou agindo errado, tentando consertar a mim mesma, para que possa voltar a voar sozinha. Certamente eu deveria aceitar a ajuda de seres mais leves, como o vento, que nos carrega com seu sopro suave, fazendo-nos bailar em sua harmoniosa melodia.

Na carta que me remeteu, você disse que temos a (doce) missão de esperar pelo “reencontro, que nos traga um sorriso, um longo abraço, um acalento para o peito cansado, um encontro de almas que precisam estar próximas para se sentirem inteiras”.

Reconheço meu erro em nomear de crença, minha fraqueza. Livrar-me-ei de minha prepotência, minha autossuficiência (tão insuficiente) e de meu individualismo que insistem em me abraçar numa insossa tentativa de sobrevivência. Reaprenderei a voar em melhor companhia que minha sombra vazia.

Aguardemos, pois, nossos bons ventos!
(frô)


Carta de Ju para frô

Para frô, um pássaro à espera do voo. Meu lindo pássaro azul, acredito que tenha essa cor pois te assemelhas ao teu lar, o céu. Longínquo, acima de nossa cabeça, portanto, acima de nossa razão. O céu e tudo o que nele existe, tem a incrível capacidade de nos tornar mais ternos: O pôr e o nascer do sol, as estrelas e lua, a chuva. Talvez por isso seja o lugar do pássaros...o pássaro vive com a “cabeça nas nuvens” e tem a sorte de saber bater as asas e sair por ai, diferente daqueles que nunca verão as belas paisagens lá de cima, por ficarem sempre com os pés no chão. Desculpe a intromissão em tua vida pacata, sem muitos sonhos...desculpe também por tocar na ferida aberta que em teu peito há. Mas não pude deixar de notar...tu não sabes voar. Escutei rumores de que isso se deve a tua incredulidade em relação ao amor. E tive que acreditar, pois sei bem que quem não acredita no amor, não pode voar. Quero acalentar teu peito cansado, meu caro pássaro, dizendo que todos nós sabemos amar, só nos resta apenas a sorte do encontro. Deve estar a se perguntar que relação tem o encontro com o voo. Esclareço, o amor não acontece para aqueles que desesperadamente o buscam, mas para aqueles que são agraciados com a oportunidade de encontrá-lo por ai. Pode lhe parecer triste demais a ideia de esperar, mas não se entristeça meu caro, é no tempo de espera que nossas asas ganham força. Pois para amar, assim como para voar, é necessário se preparar psicologicamente para conhecer o mundo gigantesco que é o outro ser , novos lugares, novos mundos...requerem de nós coragem e força para encarar o mundo lá de cima. Talvez seja essa a nossa maior missão, e quem sabe a mais doce delas... A espera pelo reencontro, que nos traga um sorriso, um longo abraço, um acalento para o peito cansado, um encontro de almas que precisam estar próximas para sentirem que são inteiras. Todo mundo sabe amar, todo mundo pode amar..só nos resta a sorte do encontro. “Neste mundo de tantos anos, entre tantos outros...que sorte a nossa heim?!”. Querida amiga, desejo-lhe sorte.

sexta-feira, 25 de setembro de 2015















Não estranhe se um dia me ouvir:
“lembra, quando a gente...”
e você sinceramente não se lembrar!

Não estranhe, também,
se eu parecer conhecer
seus gostos e seus medos;
seus gemidos, seu silêncio.

Te leio tão bem!
Foram noites de tagarelice,
toques, suspiros, risos e aconchegos!

E você vai, imediatamente, pensar:
“Louca! Apenas uma noite e...!”
Eu sei, eu sei.

Mas é você quem não sabe
das noites que se desdobraram
dessa singela lua
no meu fértil imaginário!

Ah, mas como são lindas as nossas...
Oh, não!
As minhas!
Tão doces e ardentes recordações,
que não existiram

para mim, senão!

(frô)

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Um presente pro meu presente!


Quando o produzia dentro de mim, lia relatos de partos em que as mamães diziam “foi amor a primeira vista!” e esperava, ansiosa, sua chegada! 

No dia e hora marcados – sim, você foi pontual, por incrível que pareça! Hahá! – lá estava meu garoto, grande, lindo! Fiquei olhando pra você, esperando os sinos tocarem dentro do meu coração, mas nada. Não sentia qualquer coisa que se assemelhasse a aquilo descrito como amor a primeira vista, tão relatado. Haveria algo de errado comigo?

As enfermeiras deram o primeiro banho e o colocaram no meu peito. Você sugou, com força e deleite. As mãos tão pequenas, os olhinhos puxados.

Na primeira noite, você acordava e eu o acolhia. Não sei exatamente quem estava mais assustado, eu ou você. Acontece que, daquele momento em diante, não bastasse eu tê-lo, literalmente, feito, agora o sustentava por um produto meu, o leite. A dependência era tanta, que os limites de nossos corpos pareciam se cnfundir, mesmo depois da segregação. 

E o alimentar, o limpar, o acariciar foi trazendo um sentimento diferente de absolutamente tudo que eu conhecia. Até então, eu imaginava que essa dependência significava que você precisaria de mim, também, para aprender o mundo. Grande inocência, a minha! Você, me dando a primeira lição.

Em 2008, chegou um loirinho magrelo buscando um espaço na nossa casa. Foram dias difíceis. Chorei muito, porque ele não me aceitava como mãe, não nos aceitava como família. Era complexo demais pra ele, mergulhado em sua própria realidade. Era complexo demais pra mim, mergulhada em minha própria insignificância. Foi então que, no segundo dia, desisti.

Não mais suportava o desprezo. Não mais suportava o desespero. Não mais suportava a derrota, minha realidade, minha pequenez, minha incapacidade, minha fraqueza. O loirinho iria para outro canto, não para o nosso.

Entrei no carro, decidida a não mais voltar. Você ficou quietinho, no banco traseiro, me vendo chorar. Parecia preocupado comigo, mas não. Do seu jeito lindo, com sua vozinha abençoada, disse: “Mamãe, cadê meu irmãozinho? Côitadinho! Ele tá lá, sózinho! Vamo lá buxcá meu irmãozinho!” Olhei pra você e percebi que, enquanto eu me lamentava, enquanto eu pensava na desistência, enquanto eu me encolhia, você já havia resolvido as nossas vidas. Você foi o primeiro a adotar seu irmão.

Depois disso, compreendi que o aprendiz, na história, era, sempre fui e sempre serei eu.
Você, meu pequeno grande homem, não tem ideia de minhas lutas internas, de meus pensamentos, anseios, meus pesadelos. Não tem ideia dos meus sentimentos, dúvidas e angústias... muitos deles fundados em você, em vocês! “Só coisa ruim!”, há de pensar o desatento. Na verdade, só luz.

É no questionamento que encontramos a resposta. É na dor que encontramos o alívio. É na dúvida que encontramos a certeza.

É pelos meus três tesouros que todas, absolutamente todas as minhas dores, feridas, suores e lágrimas, sejam elas reais ou imaginárias, são doces, são flores, são mar, brisa e ar. E graças, especificamente, a você, são sóis. 

Obrigada por me ensinar tanto, por me aceitar como aprendiz, por me tornar produto seu. 
(frô - mamãe)

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

PertenSer


Nunca me senti parte desse mundo. Sei que não sou a única. Sei, também, que não é o mundo todo que se sente assim. Não que eu imagine que só existam duas classes de pessoas: os que sentem-se pertencer e os que sentem-se flutuar. Deve haver outros tipos, mas na minha pequenez, consigo enxergar apenas eu e o meu oposto. A sombra delimita a luz. O silêncio delimita o som. Eu delimito o que não sou.

Na infância, apenas sentimos e assistimos. O que nos parece aceitável, incorporamos, absorvemos. O que não é compatível conosco, refutamos. Na próxima fase, inicia-se o momento das expressões. Identificamos, então, aqueles que flutuam observando neles duas características quase antagônicas, mas intimamente relacionadas: ou exagera-se nas ações, comportando-se de modo excêntrico, eclodindo no universo, como se não seguir o resto do mundo fosse um grito de liberdade; ou exagera-se nas omissões, apático ao mundo, evitando ser visto, como se aceitasse essa segregação silenciosamente. Em ambos casos, há sofrimento.

Adultos, chega-se à fase mais crítica de nossas existências.

Torna-se nítido o precipício existente entre o que somos e o que a sociedade espera de nós. Com certa consciência sinestésica, torna-se nítido, também, que a sociedade é um conjunto com regras, cheiros, construções e sentimentos próprios, enquanto nós... simplesmente não somos ela. Temos regras, pensamentos, cheiros, sons, construções, sabores e sentimentos também próprios. Somos indivíduos alheios. Somos outro.  

Muitos flutuantes, numa rebeldia gritante, rompem a pouca ligação consciencial de pertença que existia (a necessidade social de pertencer; diferente do sentimento de pertença nato) e partem para desbravar o universo. Muitos abandonam lares e colecionam experiências de mundo, de vida sem, contudo, fixar-se nas regras do cotidiano social, muitas vezes mal suprindo as próprias necessidades.
Essa rebeldia é apenas um dos possíveis caminhos. Outro, que suponho o mais difícil, é justamente o oposto. É o “apesar de”. É o “embora”. É o “mas”.

Sem qualquer sentimento nato de pertença, percebe-se que se vive nesse planeta. É fácil raciocinar que, se consciências tão variadas coexistem, há uma natureza idêntica que permite tal existência simultânea num único plano.

Resigna-se com as discrepâncias e percebe-se que só nos resta viver. Aprende-se, então, a conviver. Suporta-se as regras, mesmo que tolas. Suporta-se ações ilógicas, reações insensíveis. Suporta-se pensamentos que se opõem não só ao seu, como à própria existência. Suporta-se o sofrimento do outro pela alteridade. Suporta-se seu próprio sofrimento pela igualdade. Suporta-se o sofrimento, também, pela necessidade premente, mas trágica e, em regra,  contida, de romper com as fronteiras do ser, deixando-se de ser.

Em seu turno, abdica-se dos gritos e das revoltas e vive-se observando, absorvendo o que nos apraz e refutando-se silenciosamente o ônus, tratando de proteger o coração e a consciência das dores, temores e tumores, pelo exercício da seleção.

A vida, com seus percalços e suas surpresas, muitas vezes nos direciona a essa percepção. Fixa-nos ao chão, impedindo-nos de flutuar e, ainda que o sentimento de pertença não nos invada, aos poucos percebemos que a sociedade é uma ideia, assim como suas regras. A inteligência alheia, percebemos, não é parte desse todo. E o todo, nada mais é que o planeta, inconsciente de si, ostentando tão somente sua existência, em sua constante rotação.

É então que passamos a compreender o pertencimento de um modo diverso. Passamos a entender que o todo que refutamos é tudo, exceto nós. Por outro lado, todos os outros seres vivos, principalmente os conscientes, são inteligências individualizadas que, no máximo, sentem pertencerem-se, embora não sejam o universo. Acontece que, a partir do momento que se sente pertencer, automaticamente, são. Parece paradoxal, e é. Mas um paradoxo que coexiste, já que, no nosso menor, animados ou não, somos iguais que se misturam, se fundem. Somos um.

Aurindo dessa compreensão, o verbo “suportar” perde a natureza de ônus e ganha conotação de superação. A compreensão traz consigo o sorriso e a paz. E assim, mesmo sem sentir que pertencemos, passamos a aceitar que pertencemos, que somos, querendo ou não.
Aos poucos, percebemos que o sentimento de pertença é encontrado na empatia, que se esconde na mais profunda intimidade das relações entre todos os seres do universo. E assim, compreendemos, instintivamente, Gaia, a existência holística que somos.

(frô)

quinta-feira, 7 de maio de 2015

Há nove anos atrás...


Era 7 de maio de 2006. A barriga era redonda como a lua, ostentada pelo corpo franzino de uma mulher. Um corpo dentro de outro corpo, uma vida dentro de outra vida. Ninguém imaginava a quantidade de vidas que ainda se entrelaçariam.

O dia era morno e o vento soprava leve. As árvores tremelicavam, saudando um guerreiro que logo chegaria. As flores amanheceram mais coloridas do que nunca.

Ao entardecer, nuvens brancas carregadas de energia cobriram a cidade, derramando sobre a terra uma chuva morna e amorosa.

A noite caiu. A lua era cheia. Ele logo chegaria.

Não sei como foi, mas imagino que ele tenha dado trabalho. Seus ossos largos e seus olhos feito jabuticaba madurando, castanhos e grandes, decepcionariam se o parto fosse tranquilo.

Acontece que o corpo franzino que ostentava a tal barriga era, na verdade, frágil. Frágil em todos os sentidos: físico, psicológico, emocional, espiritual.

Aquele corpo franzino, na verdade, a genitora, falhava, dia após dia, na missão mais bela dada por Deus. Era junho de 2008 quando ela desistiu. A força hercúlea que canalizara para a barriga, durante a gravidez, dava seu último suspiro. Ela fez o melhor que pôde. Não era que o amor era pouco. Era a força, mesmo, que lhe faltava.

Em contrapartida, do lado oposto da cidade, uma outra mulher precisava de mais matéria para segurá-la ao chão. Ela tendia a voos que considerava vitais. Levitava sempre que podia, sempre que ninguém via. Mas Deus precisava que criasse raízes, que fosse mais matéria nessa vida, em que ela, mesmo dentro de um corpo, se sentia etérea.

Era dezembro quando, durante o sono, o pequeno guerreiro, que já atravessara tantas batalhas até aquele dia, revoltado, foi ter com seu anjo da guarda.

- Tá de brincadeira comigo, né?

O anjo o fitou, perplexo. Já ia respondendo que anjos não fazem esse tipo de gracejos, quando o pequeno explodiu:

- Já ouvi uns boatos por ai que querem me mandar para outra cilada! Quer dizer então que nasço com a missão de ser um guerreiro, me colocam dentro do corpo de uma mulher que mal consegue se sustentar, me fazem passar fome, frio e abandono e agora, quando acho que meu destino vai se concretizar, e vou até uma família que me dê suporte para vencer as tais batalhas, vocês querem me entregar para outra doida? Uma doida que só pensa em voar?

De olhos arregalados, o anjo suspirava. Abaixou a cabeça e mordeu os lábios. Aguardou o ânimo do garoto se acalmar e, então, informou:

- Sua primeira mãe precisava de um espírito forte e persistente para conseguir chegar ao final da gravidez. Quando nascesse, ele precisaria de um corpo ágil e perspicaz para superar as dificuldades materiais que viriam. Por fim, esse ser deveria ter uma fé imensa, para confiar na vontade de Deus, já que Ele explicou que a mulher nasceria com o título de GENITORA e passaria por uma prova muito pesada, com risco de falha, para que fosse, por fim, batizada como MÃE. Mas mesmo que falhasse, mesmo que ela o abandonasse, Ele, Deus, jamais abandonaria esse filho querido. Precisávamos de um verdadeiro guerreiro para essa missão. O espírito mais adequado que encontramos, capaz de vencer todas essas batalhas, foi você.

O pequeno começou a compreender que ele não se tornaria um guerreiro. Já o era. Indagou, temeroso, se essa nova mãe que lhe dariam também estaria enfrentando uma prova passível de falha, ao que o anjo respondeu:

- Tenho três boas notícias para te dar, quanto a isso: a primeira é que você terá irmãos, tios e avós abençoados, nessa nova casa. Mesmo que ela falhe, você não ficará desamparado. Você deve ter consciência que isso é um privilégio de poucos. 
A segunda boa notícia é que essa nova mãezinha precisa de você, muito mais que você, dela. Fique tranquilo. Ninguém larga uma tábua de salvação em meio a tempestade. A caridade é sina de todo guerreiro. Você terá que ter paciência e ser caridoso com essa mulher. E a terceira informação que você precisa saber, a mais importante, aliás, é que Deus confia nela. Ele lhe deu o nome de MÃE, assim que nasceu, sem qualquer teste, tamanha a confiança que tem nela. Por isso, aconteça o que acontecer, Ele sabe que essa mãezinha jamais vai abandoná-lo, porque ela é Ele, e Ele é ela. E com todo amor que ela te dará, você logo compreenderá que você também é Ele, e que Ele também é você e nunca mais você sentirá fome, sede, frio ou medo.

E assim, em dezembro de 2008, compreendi porque no dia 7 de maio de 2006, o mundo inteiro acordara em festa, florido, vibrando em saudação a sua chegada.

Você, meu filho, colocando sua vida sob meus cuidados, sem saber, sustenta minha mão, minha vida e minha alma. A você, minha gratidão e meu amor.

Desejo que a natureza continue comemorando com você, pequeno guerreiro, por quantos mais anos Deus lhe conceder – e que conceda o suficiente – com alegria, saúde e boas vibrações. Juntos, somos mais. Juntos, somos um. E te prometo, meu pequeno, que se aqui chegou um guerreiro pela força e coragem, daqui sairá um guerreiro da paz, completo pela paciência, benevolência, justiça e amor.



segunda-feira, 4 de maio de 2015

Amores passados


É bom que saibamos que toda história de amor é um conjunto de momentos, contexto, sentimentos, sensações, condições e ainda outros tantos fatores. Quando esse conjunto envolve mais de uma pessoa, tem-se relacionamentos interpessoais. São relacionamentos entre amigos, familiares, colegas, conhecidos, parceiros.

Os relacionamentos, por sua vez, podem nos trazer sensações e sentimentos bons e ruins. Quando são bons, ligamos à ideia de amor. Se são bons e acontecem com determinado parceiro, então logo o classificamos como relacionamento amoroso.

Compreendendo, portanto, que tais relacionamentos nada mais são que uma espécie de um gênero muito mais amplo, é imperativo aceitarmos que a importância real que esse “tipinho” desempenhará em nossas vidas é idêntica à dos outros relacionamentos, a menos que assim não queiramos.

Partindo dessa premissa, compreendendo que o relacionamento amoroso é tão somente um tipo de relacionamento interpessoal e que muitos dessa espécie se desenharão em nossas vidas, torna-se prazeroso enxergar os relacionamentos passados como belos livros, ilustrados pelas imagens das lembranças, desenhados nos cenários da vida.

Há leitores que se entretêm facilmente com as histórias que leem, não desgrudando os olhos das páginas mesmo enquanto caminham, descansam, comem. Riem e choram. Suspiram, pensam na vida. 

Há livros que têm o condão de pregar dessas peças com qualquer leitor desavisado.

Ao final da obra, contudo, a vida continua. Fechamos a última página com ódio mortal ou apaixonados pelos protagonistas. Muitas vezes, temos raiva dos bandidos que não se deram tão mal quanto mereciam. Ficamos, ainda, com uma vontade louca de acertar as contas com o autor! Mas o livro acabou e só nos resta virarmos a última folha e encontrarmos a triste, solitária e melancólica capa.

Os amores passados são livros que podem ser folheados vez ou outra, mas, em regra, não são ressuscitados. Poucos acabam relendo o livro já findo, que jaz ali, numa estante preciosa, no fundo da memória; preferimos partir para outra obra, com a expectativa premente de conhecer novos personagens, novos enredos, novas tramas. E, por incrível que pareça, os novos personagens nos cativam majestosamente; as paisagens imaginárias nos aconchegam; somos apresentados a novos problemas, novas soluções e novas sensações. Somos presenteados com um mundo novinho em folha!

E assim continuamos nossa caminhada como leitores e protagonistas de nossas vidas. A cada livro ou história, novos aprendizados, novas lembranças, novos sentimentos.


Finda a leitura, saibamos partir para a próxima obra, desejando termos nós, personagens, tolerância, compaixão, amor, paciência e persistência suficientes para que, em algum momento de nossas vidas, escrevamos o último livro e que este, termine com reticências.   
(frô)

quarta-feira, 29 de abril de 2015

Quero você... você...


Quero você, que me olha como se olhasse para o grande amor de sua vida, embora nós dois saibamos que sou apenas um deles. 

Você, a quem meu corpo reage sempre como uma menina hesitante, ao mesmo tempo em que se faz mulher, muito mais que qualquer outra. 

Esse homem cuja voz me faz eriçar os pelos, abrir os poros e borbulhar o coração, sempre que encosta no meu pescoço e sussurra qualquer besteira cuja hipótese de ser verdade excita proporcionalmente à medida que se mostra mais remota.


Quero você a quem eu possa dizer "hoje, eu te amo", sem medo, porque naquele hoje você me permitirá te amar. 

segunda-feira, 27 de abril de 2015


domingo, 26 de abril de 2015

Um pouco do dilema: Mãe... solteira... de três... meninos!


Mãe... solteira... de três... meninos!

Sempre que falo isso, percebo olhos arregalados e um suspiro que parece misturar preocupação, susto, admiração, pena e alívio (por ser eu quem declara, e não quem escuta).

Dou um sorriso forçado. Me preparo pra responder algo como “é, é barra mesmo!” aos comentários que SEMPRE surgem, como “não deve ser fácil!”, “como você dá conta?” ou, simplesmente, “Meu Deus!”.

Nos segundos que se seguem quase sempre tenho os mesmos pensamentos. Sustento o sorriso e por um curtíssimo espaço de tempo penso em tanta coisa... tanta!

Ante meus lábios forçosamente abertos, logo sou flechada por sorrisos cúmplices que beiram a compaixão. Como se soubessem o que é ser mãe-solteira-de-três-homenzinhos.

O que primeiro penso é “nossos lamentosos sorrisos são por motivos diversos... certeza!”
E são, mesmo!

Num primeiro momento, pensam-se nos gritos, lutinhas, alcalinidade das pilhas, preço do restaurante, pinturas rupestres, televisores monopolizados por videogame, homem-aranha, super-man, vasos quebrados, pias quebradas, cadeiras quebradas, mesas quebradas, sofás quebrados, pernas quebradas e tudo o mais que envolva violência e agressividade tipicamente masculinas.

Mas meu suspiro vai um pouco além. Isso mesmo: ALÉM – quer dizer que ninguém se engana, mas não é só isso! Quer dizer que tem tudo isso e mais um pouco!

Pra essa primeira parte (antes do além), sou recompensada por beijos sinceros de super-heróis que, no final do dia, salvam-me de todo e qualquer desastre, ainda que o tal desastre tenha sido iniciado exclusivamente por eles mesmos!

Já quanto à segunda parte (depois do além; é o além propriamente dito, inimaginável se não descrito, e-olhe-lá!), o que curva meus ombros é algo que eu, mulher sozinha, não consigo dar jeito. É que...

... É que eu só faço xixi e cocô. Eu não brinco de luta e nunca fui boa em videogame. Eu não tenho um pênis. Não peido. Meu coração é feito de alguma matéria extra-sensível e dói toda vez que vejo um dos meninos sobre qualquer coisa a mais de um metro do chão.

E porque só tem eu, com meu coração – pele, carne, cérebro, rotina, hormônios, etc. – de mulher e, do outro lado, o mundo – violências, injustiças, dores, suores, etc. – então me esforço para proporcionar a eles um pouco do que precisam, mesmo que eu não tenha nem um pouquinho desse pouco.

É quando tiro sabe-se-lá-de-onde, palavras como “Levanta! Você é forte!” quando caem e vejo o sangue escorrendo no joelho e meu filho segurando o choro. É quando vamos sair de casa e eu pergunto, exercendo sobre mim mesma uma força descomunal, se alguém quer “mijar” ou “cagar”. É quando vejo ele reclamando que lavar o... pinto – não piu-piu nem pirulito – arde e eu digo que tem que lavar direitinho mesmo ardendo, sem ter a mínima ideia do quanto isso deve incomodar. 

É quando um deles solta um “pum” dentro do carro e tenho que constrange-lo, rindo e brincando, pelo “peido” (não “pum”) que soltou, quando meu papel, sinto, seria confortá-lo ante os comentários do pai, explicando que “soltar pum é normal, que todo mundo solta e blá-blá-blá.” Mas no mundo em que vivemos, tenho que optar ser o carrasco, porque melhor eles aprenderem a lidar com o constrangimento promovido entre família dentro do carro por um pum, do que ter que se ver sem proteção pela primeira vez ante a maldade do mundo.

Só Deus sabe o quanto caminho contra minha natureza ao vê-los num brinquedo no parquinho, lá no alto, e dizer com a maior dureza que consigo  “Vai lá que você consegue!”. Sorriso estampado, quando na verdade, minha vontade era dizer “Desce dai, pelamordedeus!”. Nesse momento, provavelmente já analisei o material do brinquedo, o chão, a distância da localização da criança ao meu carro e o caminho mais curto até o hospital mais próximo. Além, claro, de já ter decidido o que fazer com os outros dois, enquanto isso.

Mas só pra terminar esse “desabafo”, preciso dizer que eles – os três, percebem minha dificuldade e me dizem todos os dias que sou linda e que me amam. Não me dizem que vão cagar ou mijar (embora o digam fora de casa), mas falam somente que precisam usar o banheiro (acho que a natureza masculina deles se constrange em dizer que vão fazer xixi ou cocô. Posso ver nos olhos deles que esperam minha aprovação pela escolha adequada das palavras). E também já os vi não subindo no tal brinquedo alto do parquinho, só pra pouparem meu coração.


Eis as partes que me fazem sorrir e orar, por ser mãe-solteira-de-menino. O fato de serem três só reforça a certeza de que Deus confia em mim! 

(frô)

ps.: Em tempo.. somos todos saudáveis e lindos, embora na foto não pareçamos.

sexta-feira, 27 de março de 2015


Momento Selfie

Friso que o presente não é uma crítica. Antes, pretendo que o enxerguem como um convite a pequenas viagens. 

A fotografia tirada de si mesmo, selfie, caiu no gosto do mundo. Eu, sempre que posso, ouso algumas poses.  

Nas redes sociais vejo mais selfies do que qualquer outra coisa. Todos querem registrar momentos, deixando bem claro que estavam la ou que estavam acompanhados de fulano ou ciclano, normalmente gente por quem se nutre alguma consideração. 

Hoje, porém, vi uma cena que me fez refletir. Uma garota aguardava atendimento no órgão em que trabalho. Sentada numa daquelas cadeiras de recepção, levantou o braço com o celular na mão. Fez biquinho. Depois, virou um pouco o rosto e estreitou os olhos, na tentativa de uma foto de "quase perfil". Jogou o cabelo todo para um lado. Acho que ela pretendia uma pose sexy. Só acho. Confesso que fiquei olhando com cara de curiosa, ou coisa pior. Não achei aquela cena nada sexy.

Dai em diante, não consigo segurar minha imaginação. A cada selfie que vejo, penso em como foi o momento daquele clique.

Repiso que não pretendo fazer chacota das fotografias e do modismo que, aliás, eu mesma aderi. Não estou criticando o resultado, a fotografia de si mesmo, nem tampouco a possível vaidade ou narcisismo embutido ou o simples desejo de compartilhar. Estou, ou pretendo estar, desenhando pontinhos de interrogação sobre o momento em que aquela fotografia foi tirada. Estou convidando a imaginar toda a situação daquele instante. Falo de tempo, não de matéria. 

Se algumas selfies sequer nos lembrem serem selfies, porque todo o contexto nos transmite o registro de um local, de um momento ou de um estado pessoal que parecem justificar você, segurando seu aparelho fotográfico, você clicando e você aparecendo, há outras que nos forçam a imaginação. Eu mesma já tirei fotos minhas com uma parede branca ao fundo. Quis mostrar minha felicidade, minha identidade. Mas admito que, lembrando, eu devia parecer meio retardada pra quem me visse. Não é atoa que as cliquei sozinha. 

A despeito do momento poder ser, de certa forma, digno de vários adjetivos (bons ou nem tanto), acho que nunca reparamos mais em nós mesmos como agora. Nossos defeitos e qualidades faciais têm sido milimetricamente analisados por nós, por nosso self. Já ouvi comentários como "fica do lado de ca porque meu ângulo bom é o da esquerda" ou "tira de cima pra baixo porque meu nariz sempre sai estranho se tirada de frente". Somos autoanalisados fisicamente a cada selfie tirada e publicada.

Então, imagino algumas poses solitárias, segurando o celular e o sorriso até conseguirem clicar no lugar certo, apertar o botão certo na distância certa e, ainda, buscando encontrar o ângulo certo, em segundos que parecem durar minutos, em "n" tentativas de desvendar o melhor de si mesmas. Imagino a foto com a cozinha ao fundo, deitado na cama olhando pro teto, na academia, dentro do carro, no elevador, na garagem, na varanda, na mesa do trabalho ou mesmo no banheiro. Como se chegou àquela imagem? O que se pensava? O que se intencionava? O que se enxergava? E a visão isolada da pessoa com a câmera na mão e sua própria análise daquela imagem estranhamente imaginável? Como se dá a autoanálise psíquica daquele momento? Incrível como dentro de cada selfie existe um mundo inteiro nos convidando silenciosamente para ser imaginado!

Talvez, depois de ler isso, você viaje a cada selfie vista ou, ainda, nunca mais queria tirar outra.

(frô - 03/2015)

sexta-feira, 20 de março de 2015



Dia desses recebi uma carta. Na verdade, era uma mensagem de texto, mas a recebi como carta em virtude de seu denso e elaborado conteúdo. Na verdade, mesmo, era tudo muito lindo para que eu não a considerasse uma carta (já que a carta parece ocupar um nível muito superior ao da mensagem de texto, na escala dos documentos líricos poéticos, DLP).

Tentei ser concisa na resposta que sequer foi pedida. Mas você sabe, não sou. 

Nossa amizade é gratuita e sabemos que algo flui entre nós. São flores, chuvas, mares. Talvez notas musicais, fé.  

Nosso amor é único, antigo. Não é paixão estrondosa, amor vermelho. É uma vontade simples de estar junto. Um junto que não é grudado, não é alcoólico, não é carne, não é perdido. Se é, nunca o permiti(re)mos. É ciente, contudo. Aquela certeza que a gente tem, sabe (sim, você sabe!), que sempre estaremos perto, ainda que não. É aquela mão que quando você fecha os olhos, vê e sente porque se juntos, sua mão estaria segura na minha.

Nossa intimidade excessiva parece que veio de algum lugar antes do verbo. Antes de olhares e mãos tocadas. Nossa intimidade, parece, sempre existiu. Sei que esse excesso te faz sentir algo estranho ao mundo, algo tão puro que não ousamos verbalizar. Mas te digo que excessos assim só são o que são por serem excessos. Se não o fossem, seríamos amigos como outros quaisquer. 

Nasce ela, a intimidade, menos da invasão e mais do convite. Menos da aceitação ao convite e mais da naturalidade, como uma criança que adentra à casa do vizinho, como se fosse extensão da sua própria.

Meu eu mais frágil, vulnerável, feminino e almático já se acostumou com a nudez ao seu olho nu. Suas pequenas e rasas aproximações (luneta, binóculo ou frases diretas) já não me assustam.

Quanto aos seus questionamentos, respondo, sem qualquer segurança, que sim, a culpa é toda minha. Sou uma devassa de mim. 

E sim, a culpa é sua, por esquecer que minha casa não é sua, embora vizinha. Por esquecer que minhas janelas servem para que eu possa ver o mundo. Elas não deveriam te servir. Mas sei que você nunca se esqueceu disso.

Por fim, declaro que a culpa é nossa e é nossa também a sina que nos cuidemos assim, a uma distância segura. Talvez por destino ou simplesmente pelo fato dessa coisa que nos une ser tão singela e leve; tão mais antiga que nós.

(frô)

A carta 

Hj me sinto tão íntimo seu... depois de ler tanto suas histórias, me senti porém inconvenientemente íntimo. É como se eu morasse em um prédio à frente do seu e tivesse uma luneta de raio-x. Vi até por debaixo das suas roupas. E depois de tanto te ver, me tornei um obcecado, pois quanto mais se vê (lê) mais se atiça a curiosidade. E mais! É como se vc soubesse da minha obsessão. Vc me flagra fitando e contraditoriamente abre as cortinas. O que me intriga é pq ainda assim, com vc escancarando seu eu, continuo sentindo que lhe invadi. Envergonhado até. Pq? Reflexão. Resultado: 1) a culpa é sua, vc é uma devassa de si; 2) a culpa é sua, vc escreve pensando que só lê quem não lhe conhece; 3) a culpa é minha, vc estava só respondendo pra si mesma a pergunta "vc é livre?"; 4) a culpa é minha, tenho um excesso de zelo por vc. Bom, independentemente da resposta, não adianta mais. Para um obcecado inofensivo como eu, não precisa de tratamento de choque, basta doses regulares de vc. Ainda que seja por meio de uma luneta de raio-x.

(um amigo)




sábado, 14 de março de 2015


“Não dá mais”, concluiu Ana, fria e inatingível. José a fitava silenciosamente. Ela virou as costas e saiu. No caminho para casa, avistou uma floricultura. Comprou um cacto.
Ao chegar, encarou a rosa que José lhe dera no dia anterior, flutuando numa garrafa escura. Aquele era um costume que ele mantinha desde que se conheceram: entregava-lhe uma flor quando se encontravam, sempre. Ela recebia e a encostava em qualquer lugar. Na primeira oportunidade, José a resgatava e a acolhia numa garrafa com água.
Ana nunca entendia o porquê de José insistir naquilo. Ana era prática, racional. Por vezes, áspera. O destino daquela flor era morrer. Cedo ou tarde. Numa garrafa ou num plástico, embrulhada. Pra quê estender aquela vida insignificante, patética (como, aliás, o mundo inteiro lhe parecia)?
Ana acreditava que tudo devia seguir seu curso natural: seres humanos são poligâmicos; por que insistiria na fidelidade? Seres humanos necessitam criar seres superiores para terem em quem se apoiar, embora nunca se provara a existência de qualquer divindade; aceitar a fraqueza humana era o caminho mais fácil para a vida. Não rezava, já que tudo aconteceria como deveria acontecer, ela querendo ou não, rezando ou não. Seres humanos são egoístas e medíocres (o que a incluía); por que esperar amores perfeitos de seres imperfeitos? Pra quê sonhar, se sonho e realidade jamais se tocariam!?
Desfazendo-se da garrafa, com água e flor, substituiu-a pelo cacto. Era bonito, verde, não exigiria cuidados e viveria por mais que dois dias. A insignificância era a mesma, aliás. 
Ana tinha a mania de resumir a existência de todo e qualquer ser: a flor, o cacto, José. Ela mesma. Naquele momento, Ana resumia o cacto a algo quase inexistente e à flor, totalmente, assim como José. Ela apenas assistia ao mundo.
Cansada de tantas lamúrias alheias, adormeceu jogada em sua cama, encarando o cacto que se portava silencioso e tímido no criado mudo.
Ao acordar, uma misteriosa rosa do deserto a encarava, em substituição ao cacto.
Assustada, leu o cartão que pendia da flor: “Não deixe de ser rosa para ser cacto. Na impossibilidade de ser frágil, torne-se a mais bela, resistente e imponente rosa, nesse deserto de áridas almas humanas. Prolongar uma vida só até amanhã pode ser suficiente, já que 'amanhã' pode ser muito tempo!"
Ele manteve o hábito, apesar de. 
Desse dia em diante, milagrosamente, aquelas flores foram transformando algo em Ana, que passou a cuidar das rosas que lhe enviavam silenciosamente. Colombianas, rugosas, virginianas... e, claro, aquela rosa do deserto, Adenium Obesumque sobrevivia às intempéries ostentando, também milagrosamente, a singeleza e a beleza, inerente a toda rosa.
Ao sentir o primeiro murchar de uma de suas flores, sentiu tristeza. Sentiu "a" tristeza. Ao ver o primeiro desabrochar, sentiu a felicidade invadir seu rosto, num sorriso singelo. Ao ver as cores que as flores exprimiam em seu curto existir, Ana ficava contente. Quando se sentia triste, o perfume exalado a fazia se acalmar. Aos poucos, permitia-se compreender e sentir a efemeridade, com seu começo, meio e seu fim. 
Deixou um cartão com o entregador das flores: "Por favor, que a próxima venha num vaso com terra! Não suporto mais vê-las, tão frágeis e belas, morrerem em minhas mãos impotentes!"
Recebeu, então, um vaso, aparentemente vazio. Olhos arregalados e sobrancelhas arqueadas, agradeceu ao entregador. Um cartão cravado na terra dizia, apenas: "Paciência, amor, paciência!"
Com paciência, amor e paciência, Ana aprendeu a cultivar suas rosas, proporcionando-lhes seguidos amanhãs. 
Com paciência, zelo e dedicação, aguardou ansiosamente nascer daquele vaso mais uma bela rosa do deserto.

Com paciência, amor e esperança, aprendeu que todo o esforço para ver nascer mais um "amanhã" era glorioso.

Com José, aprendeu que "amanhã" podia ser muito, muito tempo.

terça-feira, 10 de março de 2015


Ainda não sei.
Não sei se, em fim, você será tão somente um mar em ressaca. Não sei se foi um vento forte que passou, fez um baita estrago e também trouxe sensações únicas; e não volta mais. Não sei se você vai ser uma onda que apaga todo um castelo de idéias já construído, toda vez que chega – e chega sempre, e vai, e chega, e vai. E se for a onda, nesse vai-vem, acaba se estruturando como parte indispensável do mar. Não sei, amor, se você vai ser a chuva que chega, molha, limpa e evapora para molhar novas terras. Não sei se vai ser o ar que vou respirar daqui pra frente, pra todo o sempre, ou por algum tempo. Não sei se você foi, se é ou se ainda será. Ainda não sei, meu amor. Ainda não. Porque algo me diz que nem nossa última conversa, terminando todo o nada que temos um com o outro, vai resolver. Ainda temos chão a caminhar, juntos ou não. Só acho que temos muito a viver, juntos. Mas sinto, sinto muito, que não vamos. Mas não sei. Sei lá! Posso estar errada e queria estar. Só espero, mesmo, que o próximo passo que daremos, pra mesma direção ou pra direções opostas, seja guiado por Deus. E que esse fim seja um fim em si mesmo, a nos levar para novas e abençoadas direções.  

sexta-feira, 6 de março de 2015

(Sem ilustração - o desconhecido é inilustrável)

Um fora indelével

O conheci por ai. Gostei do seu jeito e, porque não um encontro, uma cerveja numa mesa de bar!?
Gostei do que vi. Risos, teorias, histórias, sonhos, relatos, discussões, planos pro próximo encontro: um cinema, talvez!?
Repentinamente, um fora. "Nosso cinema não vai rolar.."..
A frase soara estranha. Mais correta seria se se dissesse que o cinema não ia rolar ou então que nosso cinema não ia ser nosso. Mas se era nosso, como não!?"
Ante a declaração seca, não pude lutar pelo meu suposto direito a um filme, devidamente bem acompanhada. "Ok", respondi. Todavia, minha curiosa alma feminina não suportou o silêncio. Na voz mais suave que encontrei em meu desafiado e enxotado ser, soltei: "Fiz algo que você não gostou?" e ele me respondeu: "Você me trouxe lembranças..."
A resposta me soou justa, embora não a compreendesse. Eu não tinha subsídios para tanto. E se não a compreendia, tampouco a questionaria, a negaria, relutaria, insistiria. Eu não tinha mais o que perguntar, o que dizer, argumentar ou o que comentar. Naquele momento, me senti incapacitada até mesmo para ter qualquer pensamento sobre o "toco". Decidi esquecer. Sempre fui boa nisso.
Alguns meses se passaram e então ousei recordar. Aquele “fora” se transmutou numa lembrança indelével. Uma lembrança de um momento em que eu trazia lembranças que não eram minhas, relacionadas a pessoas que eu não conhecia.
A resposta àquela pergunta primária – “Fiz algo que você não gostou?” – poderia ter se resumido a um “não”. Eu não havia feito nada. Mas a verdade é que sim; eu carregara comigo algo que não era meu, nunca foi meu. Me senti um tanto torpe, fraudelenta. Uma ladra de sentimentos e sensações que eu sequer sabia o que eram. Eu furtara uma caixinha de lembranças de alguém que não conhecia, sem ter a mínima ideia do que carregava e ainda menos do seu valor. Me senti um tanto Amélie Poulain, com uma caixa de lembranças nas mãos. Só que a minha (tão minha quanto era de Amélie, sua caixa), era lacrada pela cola da ignorância.
Então entendi que ele, o dono, fizera questão de me explicar que eu lhe trazia lembranças, como forma de punição pela minha audácia, irresponsabilidade e culpa por carregar tão desavergonhadamente algo que não me pertencia.
Me senti no ímpeto, então, de me afundar nas especulações. Me permitiria um afogamento sumário num mundo de suposições.
Que tipo de lembranças um ser alheio é capaz de produzir? Não. Não se produziria; se resgataria. Que lembranças são essas, incômodas, doloridas, fugidias? Me permiti pensar, sonhar, imaginar.
Seriam essas lembranças doces, salgadas, azedas? Agridoces, feito molho chinês que deixa criança satisfeita? Seriam perfumadas, com cheiro de flor ou com cheiro de mar? Seriam azuis, púrpuras, furta-cor ou monocromáticas? Seriam foscas ou fluorescentes? Quentes, frias, dormentes?
De toda forma, não sou responsável por elas, mas as trago em mim. Lembranças de gentes que não conheço, que não me permitiram conhecer. Lembranças produzidas por quem nem imagino o sexo. Talvez sejam anjos, talvez demônios. Talvez sequer existam mais.
Senti então meu íntimo cheio de vidas alheias. Lembranças que não tenho, mas carrego na pele, no meu sorriso torto, tão meu que lembra outras pessoas.
Não entendo e nunca vou entender. Nunca vão me explicar, nunca vou perguntar. Minha missão foi apenas essa: carregar as lembranças deles.
Sinto o desprezo, que não é meu. Não sinto mais a sensação do despeito, da exclusão. Sinto, de outra sorte, a perenidade, característica de toda lembrança.
Ela se personificara em mim. Eu me transfigurara nela. Duas desconhecidas, eu e ela. Eu era ela. Talvez ainda seja.
(frô)

sábado, 7 de fevereiro de 2015

Perdida

Tenho pra mim que você volta.
Sei lá porquê, mas volta.
Sei que meu cheiro ficou
Impregnado nos seus poros.
E na sua boca,
A ardência dos meus olhos.

Sei que vai continuar seu caminho
Em linha reta, desvencilhado de mim.
E nalguma esquina, inesperadamente,
Vai olhar pra trás
E enxergar uma mulher
Que nunca antes viu.

Você vai olhar e olhar de novo,
Como quem passou os olhos,
Percebeu a sutileza d’alguma beleza
E voltou-se para apreciá-la.
E eis que, para sua surpresa,
Me reconhecerá.


Vai parar seu mundo,
E chamar meu nome
E eu o atenderei prontamente,
Como sempre fiz.
E novamente estaremos juntos.
Mas não mais seremos.

E eu,
Eu vou te olhar com aqueles olhos
De quem já foi.
E vou sorrir uma música leve
E vou sair dançando
pra você,

Perdida.

(frô)



segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Esses casais precisavam se conhecer...


Ainda pela manhã, um casal entrou em minha sala para requerer seu documento. O rapaz disse que seu agendamento fora realizado para o primeiro horário e que deveria ser atendido antes da esposa, portanto.
No momento de tirar a foto, a mulher ajeitou o cabelo do marido com as mãos e ele, se esquivando, dizia que melhor não ficaria. Fotografei. Ela olhou e disse que tinha ficado ótimo. Ele fez que sim com a cabeça e terminamos o atendimento.
Iniciei, então, a conferência dos documentos da esposa. Tirei sua foto e ela, sorridente, perguntou ao marido se ficara bem. Ele respondeu com um seco “tá bom”. A moça, linda (até demais para ele, como insiste em registrar “meu” amor-próprio-em-prol-dela), estampou um sorriso amarelado, explicando que o rapaz era “assim mesmo”. Fiquei tentando entender o que seria ser “assim mesmo” em outras situações. Os atendimentos foram finalizados e o casal se foi.

Já pela tarde, um outro casal apareceu na minha sala. Ele, simples mas elegantemente vestido, com uma pequena boina sobre os cabelos branquinhos como neve. Ela, num Chanel devidamente escovado, pulseiras belíssimas e todas as manchinhas e ruguinhas que lhe eram de direito. Entraram juntos e pediram que juntos fossem atendidos. Ele me apresentou uma pastinha vermelha, com toda a documentação dela devidamente organizada. Fiz a conferência e tirei sua foto. Ele pediu para vê-la. Virei a tela do computador e ele, sorrindo, aprovou a imagem com um sonoro “ficou linda!”. Ela sorriu tímida e carinhosamente.
Os documentos dele estavam numa pastinha verde, também organizados. A conferência correu tranqüila. Quando indiquei a cadeira para tirarmos sua foto, a esposa apareceu com um pentezinho para ajeitar seus cabelos grisalhos. Ele esperou pacientemente. Clicado, ela espiou. Aprovou, com a mesma timidez do agradecimento: um sorriso simpático.

Ao final do dia, olhei ambas certidões de casamento. O primeiro casal contava com meros sete anos de união. O segundo registrava sessenta e cinco, além, segundo eles fizeram questão de me esclarecer, dos sete anos de namoro!

“Esses casais precisavam se conhecer...”, pensei.