segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

Pra que me obriga a pensar tanto?
Hoje era dia de falar de família, amor e paz, e não de fazer retrospectiva sobre tudo o que houve no ano.
Tendo a dizer que não houve nada. Minha vida se estagnou nesse ano. Mas eu estaria sendo injusta em não reconhecer todo o caminho que trilhei internamente. Me sinto mais preparada para enfrentar meus grandes medos, no novo ano que se inicia. Quais medos?
Inicialmente, tenho que registrar que duas coisas fantásticas aconteceram nesse ano: estou me mudando para o meu apartamento; encontrei um caminho espiritual a seguir, que ressignificou tudo o que eu havia aprendido e não me servia mais.
Logo no primeiro semestre, fugi. Fugi de mim e de uma realidade que eu não sabia enfrentar. Quis reencontrar se mim mesma na solidão de uma viagem sozinha, mas acabei encontrando o valor que adquire as pessoas a quem damos ao menos uma gota de valor. Em outras palavras, aprendi que o valor que cada pessoa tem é o valor que lhe damos.
Retornei e achei que muito de minha vida havia sido resolvida, mas foi cedo que o motivo de minha fuga me procurou. Com ele, tive que me dispor a aprender muito sobre mim mesma.
Enfrentei meu carma sexual, colocando-o em seu devido lugar.
Enfrentei minha carência, dando-lhe minha mão.
Enfrentei a dúvida, esgotando minha mente até que o cansaço me ensinou que respostas não são feitas; elas emergem quando estão prontas dentro de nós.
Enfrentei a rejeição, permanecendo inerte ante a verdade já conhecida.
Enfrentei minha irresponsabilidade quanto aos meus antigos relacionamentos, chegando a dialogar sobre isso com um deles.
Enfrentei minhas vontades reais e minhas não-vontades reais.
Enfrentei a necessidade de deixar as coisas como estão, ainda que pegando fogo, e virar as costas.
Enfrentei meu medo de ser abandonada, enxergando meu medo de abandonar.
Com isso, revi meus passos durante minha vida adulta. Escolhi mal, conclui. Mas se tivesse escolhido bem, teria durado? Teria sido feliz eternamente, sem saber de tudo que sei hoje, sem ter passado por todas as experiências que já passei? Certamente não.
Há quinze anos atrás, quando me casei pela primeira vez, eu não sabia o valor da paz, da individualidade, da confiança. Eu aprendi cedo o valor da parceria, mas nunca a tive e creio que é um dos primeiros critérios que analiso ao conhecer alguém. Se não fala a minha língua, como será meu parceiro?
Há nove anos atrás, quando me casei pela segunda vez, eu não sabia o valor da amizade, de mim mesma, nem do respeito. Aprendi a duras penas meu valor, depois de me perder inteira, depois de me desrespeitar por completo e depois de perceber que ao meu lado eu não tinha um amigo.
Hoje eu terei condições de viver um conto de fadas? Justo hoje, que sei que contos de fadas não existem?
Idealizar as pessoas, sem aceitar que são humanos, é o grande erro dos contos. O amor acontece, existe e prevalece. Mas príncipes não existem e princesas tampouco. Dias mornos são bem-vindos, dias quentes e frios também. Mas pra que esse amor prevaleça, sem passarinhos e rosas surgindo nos cantos do universo, é necessário ter algo que, parece, a humanidade se confundido.
Muito se tem falado em DECISÕES. Querem que decidamos. Decidamos no casar, decidamos nos amar, decidamos ficar juntos, tolerar, suportar. Foi assim que aprendi no encontro de casais em cristo... rs.. pois é, já participei de um desses, no intuito de salvar meu casamento.
Mas ouso dizer que estão todos errados.
Amor, confiança, fidelidade, lealdade, amizade, paciência, tolerância, persistência, insistência, cumplicidade... nada disso é fruto de decisão.
Tudo isso é, na verdade, consequência.
Consequência de pensamentos parecidos, de vibrações em sintonia. Consequência da sincronia dos valores dados ao sexo, ao dinheiro, ao esforço, à cultura, aos sonhos, ao riso, ao sono, ao espírito, ao eu. Consequências.
Obviamente, que se afastam tentações por decisões (o terceiro indesejado, a preguiça, a discórdia, a depressão, o desânimo, a descrença), mas são decisões que não pesam, porque o espírito já sabe que é só seguir o fluxo.
É como um rio que corre rapidamente e você flutua nas águas geladas, achando bom. Então, escuta um barulho na margem e percebe que tem alguns animais distraídos, em excelente posição para a caça. Então, você nada contra a corrente, segura num galho e salta para a terra. O rio continua passando e você toma a decisão de continuar no fluxo do ria ou não. Se essa decisão pode torná-lo um ser aquático, terrestre ou anfíbio, você não entendeu nada e ainda não segue a corrente naturalmente. No dia em que você for a água e a água for você; no dia em que o movimento da água for sua energia de vida, vai ver que não há escolha senão seguir o fluxo do rio. Os animais continuarão ali, pedindo para ser abatidos, mas você está ocupado demais seguindo o fluxo, como consequência de tudo que você sente, percebe, pensa, pertence, é.
Muito aprendi nesse ano.
Muito colocarei em prática no ano próximo.
Sinto-me saindo da escola com meu diploma na mão, cheia de idéias pra colocar em prática. Sei, contudo, que terei que bater em muitas portas antes do meu primeiro emprego; que errarei muito e precisarei da indulgencia do patrão; que aprenderei mais e mais a cada passo dado.
Mas certamente, o ano que se passou foi pra mim uma grande escola de mim mesma.



domingo, 23 de dezembro de 2018

Conheci uma mulher, das melhores amigas de uma minha amiga. Ela se pôs a beber e a contar de suas peripécias. A movimentada vida na faculdade, as festas e a sensação de poder sempre presente, por ser de família rica.
Me contou, às gargalhadas, do dia em que, literalmente, perdeu as botas caríssimas e tb do dia em que perdeu a porta do carro. Me contou do dia em que pagou para entrar num lugar que era de entrada livre e do dia que perdeu seu anel de brilhante na privada da festa, enquanto vomitava.
Palavras como carinho e amor não faziam parte do script. Sequer a palavra sexo foi utilizada. Em seu lugar, usou "foder", "dar", "trepar", "beber", "loucura", etc.
Confesso que ri. Ri muito. Ri bastante.
Me diverti verdadeiramente e cheguei mesmo a pensar em como minha vida adolescente havia sido sem graça, na faculdade de direito, com meus amigos íntimos e vida familiar sem qualquer  excesso.
Ela, cada vez mais bêbada, contava das festas, dos cílios postiços, dos peitos postiços, da cintura postiça, mas tudo dela, depois de pagos.
No meu infinito esforço de escutá-la, me sentindo o patinho feio (e pobre) da mesa, repentinamente, falei besteira: você nunca se casou?
Ainda não sei se foi a inveja camuflada ou a inocência da criança que pergunta a um adulto como viemos ao mundo. Não sei.
O sorriso sumiu e a voz estridente diminuiu o volume. Vi seu desconforto, junto com a sensação de arrependimento que me invadia.
Ela respondeu que havia sido noiva algumas vezes, mas que na verdade nunca quis se casar. Se enrolou pra dar mais justificativas, enquanto eu tentava contornar a pergunta inconveniente ou desdizê-la, falando, ah sim, tudo bem, vai ver não encontrou a pessoa certa... ou... ou...
O estrago havia sido feito e a conversa não voltou ao ritmo inicial.
Logo após meu "fora", as vi falando sobre o distanciamento que as atingia. "Sempre aqui" era seu lema, como em toda forte amizade, mas a realidade as distanciava a cada dia. Numa dessas lamentações, meu terceiro fora escorregou sobre a minha língua num simples comentário totalmente dispensável: uma disse que sentia falta da outra, a outra respondeu idem mas que essa era a vida e a vida era assim e eu, que deveria ter ficado quieta, disse que as vibrações de cada um determinam quem fica e quem sai da vida da gente.
Pronto. Estava passando da hora de eu pegar meu suco de maracujá e ir embora.
No carro, refleti sobre as reclamações da minha amiga acerca de seu marido, que parecia estagnado na vida. Com todas as histórias contadas, entendi como é difícil se despedir de alguém que já fez tanto por você, já dividiu tantas lágrimas e risos, mas que agora, vibra numa frequência tão diferente da sua. Sei que problemas sempre surgirão e suas soluções estarão ali, a um passo de sua decisão, mas a questão da dissintonia... ah, minha gente... a dissintonia não tem solução.
Assim aconteceu entre as amigas, enquanto uma decidiu enfrentar o espelho que é o par, numa relação mais íntima e a outra, decidindo não decidir, ficou boiando na superfície da vida.
Ninguém quer enxergar essa disparidade e preferem curtir o cuidado que um tem com o outro, a memória, os costumes, a enfrentar, o quanto antes, essa realidade que os corrói dia após dia.
Então, eu repito pra mim mesma: eis o problema da dissintonia. Não há solução que não seja sair. O mundo se ajeita e se ajeitar faz parte do mundo, de todo mundo.

@todaflortocantins

segunda-feira, 3 de dezembro de 2018


Bia esqueceu a porta aberta. Leo espiou, mas não entrou, por cautela e respeito. O combinado tinha limites: a sala ampla e impessoal, durante o dia. Nada de noites, nada de acalantos, nada de horas mais que o necessário para o objetivo comum.

Mesmo sem adentrar efetivamente aos aposentos de Bia, os perfumes dela invadiam a sala opaca, suas vozes em cantoria, seus verbos em poesia, a qualquer hora. A cada minuto que passava, a cada encontro, mais Leo a conhecia. Quanto mais a conhecia, mais distraído ficava ao seu lado, e mais transparente se tornava, mostrando seus terríveis pensamentos e seus doces e humanos sentimentos.

No segundo dia do mês último, num encontro banal, suas carnes se sugaram. Talvez fosse o álcool, talvez fossem as vontades, talvez as saudades, mas algo existia ali que dava a Leo uma nunca antes vista tenacidade. Naquele dia único, Bia enxergou uma realidade paralela que, mais tarde, a confundiu. Estava encantada com o que vira, com aquele homem inteiro, maciço. Estavam naqueles olhos não só a carne, mas também a pele, a saliva, a alma, a mente, os arrepios do corpo, a palpitação do coração, o suor dos poros, o calor do sangue. Tudo, pela primeira vez desfragmentado, unido, denso. Era impossível não amar.

Os dias foram se passando e no último dia do mês último, um novo encontro. Dessa vez, um mero encontro carnal. Leo se fragmentara novamente. 

Bia se perguntava se conseguira se despedir do outro, do inteiro, mas já duvidava se um dia, o outro de fato existiu pra ela. Teria sido mais uma visão pela fresta que ele deixara, por descuido, aparecer ou teria sido apenas uma miragem?

A resposta é o que existe hoje. Hoje, existe um Leo fragmentado, partido em pedaços invisíveis a olhos pouco treinados, daqueles que não enxergam os brilhos nos olhares nem os cheiros exalados nos diferentes momentos da auto-doação.

Bia recolheu seus pensamentos e encolheu seu corpo. Densificou-se a tal ponto que, como um buraco negro, atraiu para si todas as partículas de si mesma que estavam espalhadas. Estava em lugar inseguro, com gente perigosa. Silenciou-se, como ensinou Leo, e o deixou passar com seus pedaços.

terça-feira, 20 de novembro de 2018

Pra você NUNCA MAIS SE ESQUECER:

"Funciona da seguinte maneira. Imaginemos um buffê com creme chantilly, salmão, rosquinhas, rosbife, salada de frutas, panquecas com molho, arroz, curry, iogurte e muitos, muitos outros quitutes colocados em mesa após mesa. Imaginemos que examinamos tudo e vemos algumas coisas que nos agradam. Podemos comentar com nossos botões, "Ah! Eu realmente gostaria de comer um pouco daquilo, e disso aqui, e um pouco mais daquele outro prato".

Alguns homens e mulheres tomam todas as decisões da vida dessa forma. Existe ao nosso redor um universo que acena constantemente, que se insinua nas nossas vidas, despertando e criando o apetite onde antes havia pouco ou nenhum. Nesse tipo de escolha, optamos por algo só porque aconteceu de ele estar debaixo do nosso nariz, naquele exato momento. Não é necessariamente o que queremos, mas é interessante; e, quanto mais examinamos, mais irresistível ele nos parece.

Quando estamos ligados ao self instintivo, à alma do feminino que é natural e selvagem, em vez de examinar o que por acaso esteja em exibição, dizemos a nós mesmas: "estou com fome de quê?" Sem olha para nada no mundo externo, nos voltamos para dentro e perguntamos: "Do que sinto falta? O que desejo agora?" Perguntas alternativas seriam: "Anseio por ter o quê? Estou morrendo de vontade do quê?" E a resposta constuma vir rápido. "Ah, acho que quero... na verdade o que seria muito gostoso, um pouco disso e daquilo... ah, é isso o que eu quero."

Isso está no buffê? Talvez sim, talvez não. Na maioria dos casos, provavelmente não. Teremos de ir à sua procura por algum tempo, às vezes por muito tempo. No final, porém, iremos encontrar o que procuramos e ficaremos felizes por termos feito sondagens acerca dos nossos anseios mais profundos.

Essa discriminação que Vasalisa aprende ao separar sementes de papoula do estrume e milho mofado do milho são é uma das lições mais difíceis de aprender, já que ela exige ânimo, determinação e dedicação, e muitas vezes implica esperar pelo que se quer. Em nenhuma outra atividade isso fica mais nítido do que na escolha de parceiros e companheiros. Um companheiro não pode ser escolhido como num buffê. O companheiro deve ser escolhido pelo profundo anseio da alma. Escolher só porque algo apetitoso está à sua frente não irá satisfazer nunca a fome do Self da alma. É para isso que serve a intuição. Ela é a mensageira da alma."

Clarissa Pinkola Estés - Mulheres que Correm com os Lobos

quinta-feira, 15 de novembro de 2018


quarta-feira, 14 de novembro de 2018

Teoria dos baldes de bolinhas (rs)

Existe uma piscina gigante. Nessa piscina, há uma quantidade infinita de bolinhas de diversas cores e tamanhos. Dentro delas, existe uma energia, que pode ser de diversos tipos. Por meio dessas energias, as bolinhas se ligam entre si de forma invisível, formando redes por afinidade energética. Ocorrendo essas ligações, as bolinhas tendem a se aproximar umas com as outras, atingindo um patamar de união tão forte que são atiradas a uma camada destacada da piscina. Desse destacamento formam-se  agrupamentos, como baldes imaginários, com bolinhas energeticamente afins.

Durante a vida, é comum que pessoas se identifiquem umas com as outras. Alguns grupos, porém, são mais facilmente reconhecidos, embora esse reconhecimento costume ocorrer entre eles mesmos.

Por não estarmos sozinhos - embora nos sintamos - é que nos unimos inconscientemente.

Acontece que demoramos a entender e a aceitar que somos diferentes uns dos outros e que poderíamos, sim, ser classificados em subespécies, de acordo com nossas vibrações - o que se traduziria em nossos pensamentos, anseios, ideias e ideologias.

Assim, ainda em tenra idade, numa tentativa equivocada de negar essa singularidade, nos ligamos afetivamente a pessoas cujas energias apenas se parecem com as nossas, mas não são afins. Seria como tentar unir a água ao óleo: embora semelhantes, a união é basicamente impossível.

Não temos paciência para maturarmos o suficiente para compreendermos essa teoria, para aceitá-la e, principalmente, para entrarmos num balde desses e, dentro dele, escolhermos um parceiro a nos unir.

Foi assim que, por duas vezes na mesma vida, me uni a pessoas com essências diferentes da minha e não suportei o diálogo solitário durante tantos anos, optando por me responsabilizar por todas as consequências da separação.

Se é fácil? Obviamente não. Mas talvez não seja mais difícil do que seria suportar a solidão de estar só, acompanhada.

A dica extraída da teoria: identifique seu balde, conheça pessoas de dentro dele e escolha relacionar-se mais intimamente com elas.

segunda-feira, 12 de novembro de 2018


É que o momento é delicado. Dizem que tem a ver com mercúrio em uma situação retrógrada ou qualquer coisa parecida. Então muitos assuntos antigos resolveram voltar à tona nesse período. Até uma amiga que deixou de ser amiga há anos resolveu reaparecer.
E pra mim, que tenho dois casamentos no passado, esse tal mercúrio não deixou barato. Foi tempo de reflexão, pedidos de desculpas, introspecção em seu nível máximo.
Os erros e os acertos brotavam das lembranças e, junto, os medos tão atuais de errar de novo, ou, ainda, as certezas tão reais de não querer errar mais.
Não obstante toda essa introspecção, exigiu de mim, ainda, alguma ação. Abrir mão de caprichos, revisitar o passado e sorrir novamente pra lembranças de momentos que me fizeram tão bem e, principalmente, deixar de fato no passado, o que a ele pertence.

Sobre sermos como fios individuais.



Somos fios autônomos, cada um de seu novelo. 

Ao longo da vida, no emaranhamos com outros fios, atando e desatando nós.

Com o contato demasiado, tomamos algumas das características do outro, cores e até odores, mas nunca deixamos de ser um fio autônomo no universo de fios.

Essa compreensão é básica para sermos bons pais. Aceitar que nossos filhos possuem vidas independentes, com escolhas e destinos próprios, é algo que se assemelha à conhecida máxima de "educar filhos para o mundo".

Quando nos unimos a alguém, tendemos a cometer um erro grotesco: deixamos de lado nosso próprio destino para traçar um destino comum.

Nos confundimos facilmente. O mais estável e desejável seria olharmos juntos para a mesma direção, focando cada um em seu próprio destino, ao mesmo tempo em que mantemos a referência no outro para que não nos percamos na longa jornada. Ao invés disso, a sociedade nos impinge à criação de um ser abstrato que exige toda a atenção individual dos envolvidos: o casal. 

Ser uma só carne, como ensina a igreja. Abster-se de si para que o casal se fortaleça, como ensinam as histórias de amor. O problema é que o romantismo é lindo e aconchegante, mas a realidade é mortal.

A verdade é que não existe esse ser abstrato que se pretende corporificar, o “casal”. 

Existem, sim, duas pessoas autônomas, individuais que, compreendendo suas idiossincrasias, suas necessidades pessoais, aceitando que as dificuldades e máculas do outro são versões das suas próprias, decidem dar as mãos para chegarem ao – aqui existe um outro ponto de atenção – destino de cada um, individualmente. Dar as mãos, inclusive, pode ser melindroso, à medida em que um pode pesar para o outro. As mãos devem ser referência, devem ser toque suave a lembrança segura do caminho reto em momentos de perdição e fraqueza.

O destino individual exige a premissa de que o casal como sujeito não existe e, portanto, não possui destino próprio. Engloba-se aqui o conceito de família.

É imprescindível que se entenda que cada um tem suas metas e seus ideias; suas sombras a enfrentar e suas portas a encarar; seus méritos a colher e suas vidas a viver; sonhos a concretizar e desafios a vencer.

Quando alimentamos tão somente esse ser intangível, o casal, deixamos de alimentar a nós mesmos. Deixarmos de ser quem somos não é apenas incômodo; é suicídio.

Toda essa teoria fica acessível ao pensarmos na família extensa. Cada um cuida de sua vida, seguindo os ensinamentos dos antepassados. Não se tem, então, um destino único para a família, mas uma trajetória para cada ente. 

O apego e as relações mais íntimas no casal e na família nuclear deturpam essa realidade com o excesso de aproximação e, principalmente, com o romantismo criado como força reagente ao mundo individualista e autofágico.

É necessário que nos compreendamos e nos aceitemos como indivíduos. Que identifiquemos quem somos (a comida que preferimos, a cor que nos acalma, a música que nos purifica, as sensações que nos agradam). É necessário nos reconhecermos por nós mesmos para que possamos ressignificar nossas relações com o outro e também conosco e, assim, ressuscitemos a nós mesmos dentro de nossas próprias vidas. 

todaflor

segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Escrevi uma carta e entreguei. Sim, escrevi. E sim, entreguei. Para todos nós, que dançamos com as palavras, nada mais natural que escrever e guardar, escrever e arquivar, escrever e apagar. Dessa vez, escrevi e entreguei.
Eu não sabia ao certo o quanto precisava daquela janela, o quanto abri-la me aliviaria.

Desde meu derradeiro encontro comigo mesma, em meditação consciente com meu mais puro eu, tenho refletido sobre os reflexos de minhas decisões. Percebi que ainda hoje arrasto muito do meu passado, mas ainda não havia analisado minuciosamente minha parte da culpa. Comecei, então, no meu primeiro divórcio.

Culpados não existiram. Havíamos responsabilizado a incompatibilidade de gênios, a diferença do ritmo e de interesses. Mesmo a idade certamente havia contribuído. No meu entender, se algum de nós foi responsável, haveria de ser ele, por não corresponder às minhas necessidades, que eram básicas.

Dessa vez, contudo, a reflexão foi extraordinária. Os caminhos eram convexos e insistiam em parar no meu rosto cansado, apático. Eu estava esgotada e desisti.

Desistindo, eu sofria internamente com minha falta de honestidade, de companheirismo, de verdade. Faltou-me cumprir o que prometi. Mas o que prometi, a final? Rememorei meus votos. Ser fiel e respeitá-lo. Amá-lo hoje mais que ontem e amanhã, mais que hoje. Mas não o fiz.

Durante meus momentos de autoflagelamento, eu repetia os votos. Fui percebendo que, embora as palavras tivessem força, eu, ou melhor, nós, não sabíamos do que se tratavam. Nós não sabíamos o que era um casamento. Nós não sabíamos o que era o cuidado com os filhos. Nós não sabíamos o que era a decepção do não ser o que tinha tudo para vir a ser. Nós não sabíamos o que era a falta de admiração nem a responsabilidade de ambos, cada um ao seu modo, de manter o fogo do interesse. Nós não sabíamos de nada disso. Como poderíamos ser cobrados de nossas promessas vãs?

Ao mesmo tempo, assim como a lei, o desconhecimento de todo o peso da palavra não poderia ser alegado para eximir-nos de seu cumprimento. Eu deveria ter, então, insistido por toda a minha vida? Eu deveria ter mantido minha palavra, sob o afã da infelicidade? E ele? Ele, embora amasse, também não era feliz comigo, principalmente porque não era amado como merecia. Foi então que compreendi o poder do consentimento, ainda que tardio.

Durante esses quase dez anos que se passaram, ele encontrou uma nova pessoa com quem pôde conhecer o verdadeiro amor entre duas pessoas. Eu sempre fiquei demasiado feliz com isso, mas não entendia porquê a união dele com a atual esposa me fazia tão verdadeiramente bem.

Nesse momento, pensando por todos os ângulos possíveis, entendi que fiz o certo. Busquei a minha felicidade, permitindo que ele encontrasse a dele. Mais que isso, me senti grata por tudo.

Escrevi.

Agradeci, inclusive, por ele estar feliz com a nova família. Reconheci meu erro por ter desistido de nós. Mandei a cara, por email.

Menos de uma hora depois, uma resposta. Uma não-pedida resposta.

Havia um reconhecimento e uma gratidão mútua. Havia um peso a menos no meu peito, em toda a minha vida, daqui para frente.

quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Quanto custa seu sorriso?

Acordei com uma baita dor nas costas, filhos pré-adolescente mal humorados e o caçula parecendo um pequeno, doce e inofensivo zumbi.

O leite saboreado na noite anterior dormiu fora da geladeira e hoje já não prestava. A culpa de ter me esquecido de reabastecer a despensa me corroía.

A música do carro resolveu não tocar, promovendo um pesado silêncio, esse sim, tocando fundo em nossas almas de faces pálidas, a caminho da escola.

No derradeiro semáforo antes da chegada, um imigrante magricelo fazia malabarismo com nada menos, senhoras e senhores, que três claves gigantescas e uma bola de futebol!

Jogava pra ca, jogava pra lá... Bola na testa, no pé, na nuca, na testa de novo e as claves milagrosamente em sintonia, bailando no ar.

Minha atenção, que não é besta nem nada, foi desviada para aquele artista a derreter de suor no meio da rua. Eram exatamente sete horas e doze minutos e sim, o sol já judiava na capital mais quente do país tropical.

Chamei a atenção dos meus filhos, que logo soltaram sonoros "urra!" seguidos de "caraaaaaca!" e, por fim, vários e vários sorrisos. De todos nós. Todos, mesmo.

Procurei dinheiro mas eu havia saído com pressa e não levara a carteira. Sorri para o malabarista, pedi sinceras desculpas por não ter, àquela hora, um tostão no bolso. Ele sorriu de volta e me disse "Tudo bem! Tenha um ótimo dia!".

E foi assim que o imigrante magro e suado, o artista de rua talentoso que madrugou no sinaleiro buscando seu faz-me-rir, me doou meu próprio sorriso e o portal para um dia especialmente bom!

Quanto ao preço do meu sorriso... hoje saiu de graça, graças à caridade do senhor malabarista!

terça-feira, 25 de setembro de 2018


Ele foi o primeiro que me tocou a alma.
Olhava nos meus olhos e completava minhas palavras.
Reconhecíamo-nos nos devaneios um do outro.
O universo fluía por nós.
Nos despedimos e ele se emudeceu em poros trancados
pela fugacidade daquilo que foi.

As dúvidas me inundavam, ante o silêncio eloqüente
das frases trocadas em vão, sem intenção.
Não me conhecendo, me tocou pelo que
achava que eu era, uma sua construção.
Tateou no escuro e encontrou algo que nunca existiu.
Eu, ingênua, achava que ele sabia o que tocava.

Tempos se passaram esgueirando-me como pude.
Todos que me batiam à porta, tinham como resposta
meu sorriso silencioso e vazio.
Mas o universo me presenteou.
Chegou você, que pouco queria, sabendo que tudo podia.  
Surrupiando das minhas profundezas, a minha calma.

Suas certezas divinas confundiam as incertezas humanas.
As certezas humanas confundiam suas incertezas divinas.
Sua ambigüidade atraia meu interesse, como isca.
Cautelosa, ainda, entreguei parte de mim, audaciosa.
Meu corpo inteiro, na verdade,
deixando sã a minha alma.

Nossos corpos, astuciosos, se entenderam sozinhos.
Sem o menor resquício de consciência, 
- nem medo nem cautela nem pudor -
se misturaram na indolente indecência, despreocupados,
como duas gotas de óleo perfumadas,
fazendo nascer, dessa mistura, um cheiro de nós.

Eu existia e você me conhecia.
Você existia mais do que pretendia.
Resgatado de si, você sentia alma alcançada.
Nos despedimos, contudo. Mas nos levamos.
Eu, seu perfume na minha pele.
Você, meu riso nas suas pálpebras fechadas.

quinta-feira, 16 de agosto de 2018


Começo a sentir a presença da velhice. Meus amigos riem. 
As linhas se aprofundando na minha pele deram o sinal de sua chegada.
Navegando entre os sulcos que começam a se formar embaixo dos meus olhos, percebo meus medos que subsistem.
Esse foi o primeiro pensamento que tive, ao olhar a mulher do espelho.
Antes de pensar nas minhas histórias, nas minhas conquistas e desistências; antes mesmo de pensar nos sonhos realizados e nos planos que ainda tenho, pensei nos medos.
Minha meia-vida chega – sou otimista. A vida, dobro-a ao meio. Meu meio é meu início. Meu fim se confundirá com o começo – sou otimista. 
Viverei de novo o que já vivi ou viverei apenas o novo? Preciso aparar minhas arestas. Preciso me curar da dor da gravidade. Preciso entender ou só devo viver? Acho que eu já deveria saber. Mas não sei. Não é chegava ainda a idade da contemplação? A idade de compreender que as coisas são simples e aceitá-las como são? Ainda não tenho essa maturidade. Devo estar atrasada, porque ainda quero. Ainda sinto. Sinto muito quando as coisas não funcionam como eu creio que deveriam funcionar. Sinto muito um amor não vivido. Sinto muito um olhar perdido. Sinto muito as palavras engasgadas e ainda mais as mãos amarradas.
É chegada minha meia vida. Deveria eu comemorar? Daqui em diante, dobro a esquina. Retorno rumo ao reinício. Mas antes de reiniciar, terei um completo apagão em minha mente. Minha alma saberá?
Não sei. Ainda não é hora de saber. Deveria ser?
Deus meu! Tende piedade dessa moça questionadora. Moça, não. Dessa mulher de meia vida. Me permita viver sorrindo, mesmo sem saber dos mistérios do universo. Que minha ignorância me conduza à fé que esclarece direto aos corações. Não é fé cega, não. É fé da compreensão íntima, entre almas que se comunicam sem palavras. 
Dobro-a ao meio.
Ainda tenho o tempo que já vivi, a viver – já disse que sou otimista.
Já passou meu tempo de errar. Preciso do acerto, porque pode ser que eu não esteja exatamente no meio. Corro ainda o risco de me abortar. Acontece que o acerto não dá garantias. A única garantia que dá o acerto é de ser a única coisa verdadeira no mundo: a escolha, depois que se escolhe.
Posso estar no meio do tempo, mas o caminho não é o do meio. O caminho é o caminhar. Pende para um e outro lado. Decide em bifurcações. Inspiro minha coragem para viver em forma nova, todo o tempo que já vivi.
Não pretendo que seja tudo diferente. Pretendo que seja como tem que ser. E será, mesmo que eu não pretendesse nada. Mas será o que eu pretender, se assim o fizer. O farei. Deixarei para trás as flores que já me deram. Deixarei para trás as almas que me abraçaram. Deixarei para trás os beijos que recebi. Agora, o novo. O novo que pode ser novo e o novo que pode ser velho – como eu. Hoje, sou. Estou preparada para a próxima metade, assim como sempre estive para o amanhã.
Minhas linhas ficam mais profundas a cada dia. Não sei como será. Preciso correr. Não, não preciso. Preciso viver. Que sutil diferença! A idade começa a fazer sua magia. 
Olho no espelho a mulher com meia vida. Só meia, ainda.

quarta-feira, 11 de julho de 2018

Admito.

Pra mim também não foi como esperado.

Estranhamente, nossa comunicação se perdeu no universo de cheiros, gostos, ritmos e sensações.

Éramos bons, muito bons, na arte do diálogo que fluía e concatenava idéias, interesses, objetivos. Surgiu, indubitavelmente, admiração e, com ela, vontades.

Parecíamos bons, também, um para o outro, na valsa das peles que, curiosas, se exploravam. Os sentidos, em pequenas explosões, indicavam o caminho a seguir, e seguíamos. Entregávamo-nos paulatinamente, na calma luz das certezas.

Entre vozes e suspiros, chamei seu nome. Você, porém, frenético e hipnotizado, parecia não me ouvir.

Olhei seus olhos e notei que também me chamava. Mas meus ouvidos estavam surdos aos seus apelos, ante um estrondo silencioso dentro do meu vazio universo.

Estávamos ali, juntos, mas estávamos sós, apartados. Não nos víamos, não nos ouvíamos, não nos sentíamos.

Não sei o que houve depois disso. Tudo, tudo parecia no lugar certo e na hora certa. Os toques correspondidos, os perfumes apreciados. A ponte havia sido previamente construída e estávamos ligados internamente, sob o negro céu estrelado. Todos os cuidados foram tomados. O zelo estava presente.

Desaparecemos, contudo, um para o outro, em algum momento, sem sequer nos despedirmos.

Luzes acesas, atentos, apertamo-nos, então, as mãos e o peito. Os corações batendo uníssonos, como se quisessem recuperar o que foi perdido.

Ali mesmo, formalizamos a despedida da partida que se concretizara, inoportuna, horas antes, deixando-nos órfãos do elo que se fizera subentendido.

As dúvidas pairavam. Lacuna ou loucura? Destino ou equívoco? Engano recíproco ou auto-engano? Dúvidas que se pulverizaram no cheiro denso do seu perfume.

Gabi.gmo

quinta-feira, 28 de junho de 2018

O doutor diagnosticou que ela estava apaixonada, mas Lorena sabia que não.

Saiu da sessão decidida a encontrar onde, nela, João atingia. Não era seu coração e disso ela sabia. O doutor estava equivocado.

Lorena chamou João e tomaram um café. Ela o observava, curiosa. Dizia coisas que, sabia, não eram para ser ditas, mas necessitava dizê-las para observar João e, principalmente, os efeitos que lhe causariam as reações dele.

A cada passo dado, olhos e ouvidos atentos, a expectativa a resumia. Dia após dia de observação de si mesma, Lorena começou a reconhecer suas sensações. Não era tesão. Não era amor. Não era paixão. Era mais brando, duma cor lilás aveludada, que não incomodava. Reconheceu que era algo, mas não era um sentimento. Ocupava espaço dentro dela e lhe causava inércia, porque se retroalimentava.

João era um poço que pedia diariamente para ser mergulhado. Lorena aceitava o convite. Mas também não era o convite que a excitava.

A cada mergulho conhecia brilhos novos nas profundezas daquele poço. Era a curiosidade que a movia na direção da água, na direção do desconhecido que tantas sensações lhe proporcionava.

Lorena não se vinculava à aquele poço. Não se reconhecia nele.

Ele era extensão de João, que ninguém cinhecia, que ninguém acessava.

Nas profundezas do poço, havia terra. Lorena sabia. Mas sabia também que se tentasse chegar ao chão, se afogaria.

Aquelas águas lhe pareciam - sentia - demasiado traiçoeiras.

Notou que quanto mais afundava, mais as águas pesavam sobre seu corpo e dificultavam sua emersão. João, seu chão e suas águas. Lorena e sua curiosidade fatal.

O poço recebia Lorena com águas geladas, desconfiadas. Aos poucos, porém, se acostumavam.

Ele, com aquele corpo estranho dentro de si, passava a achar graça na sensação estranha que lhe causava.

A temperatura da água, nela, passa a ter efeitos inesperados, como uma cachoeira que purificava.

Aos poucos, ele foi achando normal Lorena nadando em suas águas e passou mesmo a esperá-la, ansioso.

Passou a se tornar mais denso quando a percebia demasiado pesada, facilitando que flutuasse; e menos condensado quanto a percebia leve demais, tornando-se um pouco mais permeável e garantindo sua imersão.

A pele dela, ao seu tempo, aprendia a lidar com as nuances da água, com suas transformações físicas que, percebia, não atingia sua natureza. Quente, morna ou fria, sabia que água era aquela, em sua essência.

João, no entanto, reparando que Lorena se familiarizara com o poço e que o poço não mais estranhava Lorena, reprovou tamanha intimidade.

Tirou, então, sem aviso ou explicação, a escada que levava ao seu interior.

Ao chegar para mais uma visita, Lorena se deparou com as fronteiras aparentemente intransponíveis. Não entendia os motivos de tamanha violência. Sua curiosidade se misturava a ira, orgulho e petulância. Teve suas verdades desafiadas.

Queria. Iria.

Escalou as paredes, com toda a perspicácia que tinha, e pulou para dentro do poço.

Flutuou, mergulhou. Desceu o máximo que pôde. Subiu. Nadou. Sentiu o contato das águas em seus poros. Se sentiu. Amou as águas e se amou.

Na hora de sair de seu último banho, contudo, Lorena hesitou. Cansada, já desistindo de nadar, viu que João a observava, de longe. Sorriu. Ele não.

Com ar de reprovação, aproximou-se calmamente. Assistiu sua visitante cansando-se. Esfriou-se inteiro. Ela, pálida, perdia as forças. Olhos estagnados. Muda. Lábios cerrados. Afundava, devagar.

Outro dia, na sessão, o doutor repetiu seu diagnóstico: é paixão!

Lorena sabia que seu pecado tinha outro nome. Disse, sorrindo: "Não. Não é, doutor! De paixão ninguém morre."

- Gabi.gmo -

As fadas

Ma minha vida, três almas me trouxeram um tesouro. Cada uma ao seu modo, em seu tempo, me trouxeram um pouquinho da mesma riqueza: detalhes mágicos.
A primeira vez que tive contato com uma dessas três fadas, meu espírito reagiu agressivamente. Nossas energias eram diferentes. Também pudera, eu era muito aquém dela.
Ela tinha o estranho dom de fazer tudo parecer cena de filme. Enquanto eu pensava no refrigerante com um salgado, com.ela acontecia a macarronada com vinho, na beira do lago - e era o Sena.
Era uma flor no cabelo, uma perninha levantada e pluft! Tínhamos fotos de cinema! Um cintinho amarrado aqui, uma botina no pé e a magia acontecia, entrando em personagens que eu sequer conhecia.
Depois da briga inicial, a admiração pra sempre. Entendi minha pequenez diante de alguém que fazia de uma simples sopa de legumes, um jantar especial.
Depois, conheci a outra fada. Eu poderia brincar, dizendo que era a fada do dente - e ela sabe o porque - mas vamos fingir que não falei nada. Pois bem, a segunda fada me ensinou sobre a delicadeza do amor. Ela fazia a mágica de transformar um docinho de padaria em uma jóia reluzente, quando colocava nele o pozinho do "eu pensei em você"; o toque no cabelo era transformado em calor que aquecia o universo inteiro dentro da gente. Os dedos na pele alcançavam o coração. Sabia que ela cheirava a lírio, mesmo que eu nunca tivesse sentido o perfume de um desses. Hoje, sei que eu estava certa. Ela cheira a lírio, mesmo, e embora saiba o perfume que ela usa, eu nunca - nunca - me atreveria a usar do mesmo cheiro. Eu não sei cheirar a lírio tão perfeitamente quanto ela e passaria uma grande vergonha.
A terceira fada é desvairada. Nesse momento, está do outro lado do oceano, vivendo um grande amor - que eu vi sendo plantado. Ela é tão, mas tão, mas tão linda, que por onde passa, ofusca até a inveja. A magia dela era parecida com a da primeira fada: também fazia de imagens simples, painéis dignos de se guardar na alma. Mas além de fazer parecer cena de filme, essa fada encantada tinha o dom de se colocar e nos puxar pra dentro da cena. Talvez a primeira também tivesse esse dom - e eu acredito que tenha - mas eu, na minha pequenez, ainda estava imatura pra deixar transformar minha realidade no ambiente mágico que ela se propunha. Voltemos à terceira fada. Ela deu ao meu filho, banho de banheira com muita, muita espuma, numa água quentinha num dia frio e cansativo. Depois, com três ou quatro velas e as luzes apagadas, nos deu de presente um lindo jantar à luz de velas. Hoje, me presenteia todos os dias com a esperança verdadeira - não aquela da espera com confiança, mas daquela do otimismo sem lógica, movido pela simples certeza da ação concreta no sentido que manda o coração.
Hoje, me disseram, sou formada fada. Será? Sei que elas existem - as fadas.
Eu sei e você sabe que não mais
estávamos na mesma sintonia.
Talvez tenha sido
Uma mera coincidência;
Ou o alinhamento certeiro
dos planetas, naqueles dias
- porque só naqueles dias,
a gente sabia que até o ar
que eu respirava,
era o mesmo ar que te envolvia.

Mas aí, sei lá o que se passou...

E o que eu dizia virou grego.
Eu voava, você dormia.
Eu dançava, você lia.
E meu ritmo te incomodava
E seu ritmo me angustiava
E suas mãos não me alcançavam
E minhas palavras ficaram mudas
E sua carne, por tantas fervia
E a minha pele não te aquecia...
E eu, ausente, com sua ausência vivia.

Era hora, meu amor! Era hora de partir!

Foi então que eu cai.
Nos meus vícios, me afoguei,
me sujei, me perdi.
E já no derradeiro sofrimento,
do tipo que dói tanto, que cura,
sai das minhas sombras, também suas.
(Não mais minhas, que fique claro)
E quanto mais você se distanciava,
Mais leve eu me sentia.
E ia subindo, subindo... e você ficou.

Me doeu tanto, meu amor!

Me ardia ver você, parado, com os pés
na terra sua, cravados,
se enterrando nos mesmos vícios de outrora.
Eu queria te dizer, mas me alertaram.. cada um com sua vida;
cada um com sua alma!
E rezo, desde então, pra que você caia!
Pra que a queda seja suave, mas que caia!
E então, depois da queda e da cura,
O mundo será, de novo, nosso.

- Gabi.gmo -

sexta-feira, 8 de junho de 2018

Eu sempre soube que era apego.
Eu só não entendia a quê.

Eu te idealizei e depois, te desconstrui.
Enxerguei seus defeitos, seus medos,
mas o apego continuava apegado a mim.
Usei da substituição.
Veio um, depois de você.
Depois, outro.
Mas você colecionava meus meses, anos!

Meditei pelo exaurimento de projeções.
Usei do eterno retorno,
Da sublimação.
Te desfiz por completo,
Te coloquei no chão, junto com o resto.
Mas de repente, você surgia na porta
E meu mundo simplemente se abria.

Até que me explicaram
Que a objeto de apego é o sofrimento
E não o outro.

A dor que você me impingia
Era tão só a dor que você sentia
E me transmitia, silencioso,
Enquanto eu segurava sua mão.

E como semelhantes que se atraem,
Afins que se complementam,
Quanto mais eu te sentia
Mais nos misturávamos
E um único olhar era capaz
De substituir o diálogo
de toda uma madrugada.

E o tempo que a gente se amava,
O tempo que nos restaria,
O tempo que já perdemos,
O tempo que a gente queria,
Eram todos relativizados
Naqueles eternos momentos finitos
Que vivíamos e viveríamos em nós.

Erro identificado, me permiti a desconexão.
Paulatinamente, com a mesma paciência
Da raposa que permitiu a aproximação.
E o sofrimento que eu sentia
Foi sendo iluminado pela minha luz
- essa, que te atraiu desde o início -
E fui me salvando de nós dois.

Hoje, estou aqui.
Te vejo aí e não dói.
Hoje estou curada.
Fique onde está
E tudo ficará bem.

Não dê nem mais um passo
em minha direção.



segunda-feira, 14 de maio de 2018

Uma carta

Em mais uma tensa semana que antecede o dia das mães, me pediram uma foto em que eu estava grávida.

Busquei nos álbuns de pouco mais de uma década e encontrei. Encontrei várias fotos em que eu exibia uma barriga imensa, com meus vinte e um anos de idade. Fotos em que tentamos captar um pouco daquela magia; fotos felizes, em que ambos, tão jovens, estávamos ansiosos por algo que, em verdade, parecia que não ansiávamos.

Passei por algumas fotografias, pensativa, até que me deparei com uma em que estávamos, nós dois, na beira da praia.

Eu acariciava seus cabelos, sentada numa cadeira e você no chão, apoiado nas minhas pernas, com um instrumento nas mãos. Tínhamos dezenove, ali. Me lembrei da viagem, das risadas, da vida naquele tempo.

Nem com um milhão de dicas poderíamos imaginar quanta coisa ainda nos suscederia, juntos e separados.

Esses dias, me perguntaram se me casei pela segunda vez porque engravidei. A resposta foi afirmativa, sendo completada por um pesaroso "tinha que tentar, pelo meu filho."

Com você, não. Eu não tinha que tentar nada. Eu não tentei nada. Nós não tentamos nada.
Nós apenas quisemos e fizemos. Nós apenas vivemos a saga de construir uma família feliz, aos vinte  anos.

A gente não sabia que precisava de mais que vontade pra alcançar esse objetivo. Hoje me parece tão injusto a sociedade nos pressionar a casar na casa dos vinte, quanto fazer um jovem de dezessete escolher uma profissão no vestibular.

Precisei sair de dois casamentos pra perceber que, antes de qualquer coisa, necessitamos de maturidade. Me vem à mente aquele texto de Chapplin, que sugere à vida acontecer ao contrário.

Maturidade deveria ser inata, pra nos conhecermos a nós mesmos desde sempre. Saber o que nos é essencial, o que pode ser tolerado, o que é inaceitável.

Então, ainda a maturidade nos possibilitaria escolher o outro e deixarmos ser escolhidos.

Mas a realidade não é bem essa. Se a gente nem se conhece a si, como é possível conhecer o outro? Foi então que aprendi a me perdoar, a nos perdoar por não termos sido pra sempre.

É preciso, ainda, tanta coisa! Coisas que a vida vai ensinando, mas a gente só aprende depois, que já não dá mais tempo de consertar. Tem lição, aliás, que fica atravancada no tempo, feito vírus encubado, esperando que tenhamos maturidade pra entendê-la.

Nessa brincadeira, que envolveu eu, você, nossos filhos e familiares, a gente foi recebendo lições sobre vários temas. Muitas soubemos aproveitar a tempo. Outras (maioria), são intempestivas pra nós, mas certamente serão úteis para aventuras próximas.

Nos ensinaram sobre amizade, companheirismo, cumplicidade. Respeito, fidelidade e lealdade. Sobre somar e sobre dividir. Ceder e exigir. Planejar, sonhar, persistir, insistir e desistir.

Tivemos licões sobre humildade, sinceridade, sexo, carinho, animosidade, presença, paciência, dedicação, ausência, ciumes, desconfiança, certezas.

Ainda naquela época, aprendi que cada pessoa tem sua vida e sua história, mesmo antes da vida e mesmo pra depois dessa.

Não adiantava eu querer proteger as crianças se os aprendizados de que eles precisavam envolvessem sua ausência. Ausência, aliás, opcional, voluntária, que só me mostra que a lição sobre presença você ainda não captou.

Não adiantava querer protegê-los se fazia parte do aprendizado deles, lidar comigo assim, nesse aprendizado solitário.

Não adiantava eu suportar, querendo te proteger, se você só cresceria longe de mim.

Ainda naquela época aprendi sobre companhia. A gente gostava de estar um com o outro, mas aos poucos, nos conhecendo melhor, fui percebendo que eu gostava ainda mais de outras companhias. Se eu conhecesse da minha necessidade por diálogos profundos, certamente não teria te permitido entrar nessa fria.

Aprendi também sobre parceria. Eu ainda não entendia o que ela era, mas entendia que não era só estar junto, rir junto, dar a mão nos momentos difíceis e curtir momentos bons. O nome disso era amizade. Essencial, também. Mas parceria era outra coisa. Só depois do segundo casamento é que compreendi, sendo parceira sem ter parceiro, que essa palavra exige muito dos dois lados. Exige planos feitos juntos e mão na massa. Exige gritos de incentivo, ou beijos e toques. Exige cessão. Exige firmeza. Exige dos dois, construção. No nosso caso, você e eu tínhamos pensamentos tão distintos que era impossível a parceria. Nossos relógios andavam descompassado.

No meu segundo casamento, o egoísmo reinava. Não há parceria quando apenas o sonho de um é importante, nem quando apenas um luta pra construir o sonho dos dois.

Hoje creio que eu estava estavauivocada, quando defendia que não era necessário que os dois colaborassem proporcionalmente, que bastava cada um dar o que podia. Não. Na parceria, se um pode dar menos de força, tem que compensar com psicológico. Se tem menos de suor pra dar, tem que dar mais em outro aspecto. Tem que ter esforço significativo dos dois, preocupação, importancia, sangue, garra. Não é parceria se me desdobro em mil e o outro faz tão somente seu possível.

Ainda naquela época, aprendi sobre cumplicidade, porque não tínhamos. Ainda não sei explicar sobre essa palavra, porque nunca a vivi. Mas pelo que tenho assistido, suspeito que ela tenha relação com parceria, respeito e amor. Suspeito que seja o selo de muitas uniões bem sucedidas.

Mas foi só depois de decidir andar sozinha, que aprendi que algumas coisas são essenciais num casamento. Outras, são batidas como necessárias, mas são supérfluas, pelo menos pra mim.

Sobre a liberdade, aprendi sobre sua essencialidade exercitando a minha. Sobre a confiança, aprendi que é mais consequência do que causa. Amor não é sentimento. Fidelidade tem mais a ver com vida do que com sexo. Dinheiro não é tudo, mas é muito. Tesão é diretamente proporcional à admiração e ambos são essenciais.

Aprendi que o que é meu, é meu, não é nosso. O que é do outro, é do outro, não é nosso. O que é nosso, sim, é nosso, e deve ser tratado como tal. Essas regras, aliás, valem pro dinheiro, pros sentimentos, pras histórias, pros desejos, necessidades, sonhos e projetos.

Reconhecer a importância da individualidade é essencial. Respeitá-la, alimentá-la. Deixar o outro ser o outro, sem deixar de incentivar suas mudas, evoluções.

Lembro-me de que sempre ouvia que hoje, nos amávamos mais que ontem; e que amanhã nos amaríamos mais que hoje. E no dia em que percebi que isso não acontecia, fui acreditando que algo estava errado.

Mal sabia eu que a gente é assim mesmo. Que hoje, ama assim e amanhã ama diferente. Depois de amanhã, volta a amar como se fosse a primeira vez. E que depois, a gente nem ama. Mal sabia eu que o ser humano é oscilante porque é cíclico, é hormonal e é complexo. Tudo faz parte e é  questão de paciência, compreensão e arte.

Eu não entendia que amor é produto e não matéria-prima. Que é conjunto e não um coração vermelho.

Volto à nossa fotografia. Sorrio. Agora, olho pra gente e não me sinto triste, nao me arrependo de nada; nem do começo, nem do meio nem do fim. Respeito tudo o que vivenciamos, com amor e gratidão. Não sei se você também pensa assim, mas cada um tem seu tempo e seu caminho.

Com você, me dispus a viver. O resultado disso não foi a felicidade do pra sempre, mas aprendizados lindos que me tornaram e tornam quem sou.

Com você, não tentei. Com você, eu vivi e foi lindo.

Se daríamos certo hoje? Acho que não. Hoje acredito que você não era pra mim e nem eu, pra você.

Sou grata por tudo o que passamos e mesmo pelas lágrimas que derramamos; pelas lições que aprendemos, pelas tantas que entendi só depois de muito tempo e por outras que sei que ainda virão.

Sou grata por termos exercido nossa liberdade de nos casar, de nos separar e de recomeçar longe um do outro, mas juntos de outros. Obrigada.

quarta-feira, 2 de maio de 2018

Sonho























[Sonho]

Eu vomitei um astrolábio.

Nas palmas de minhas mãos, 
Imenso, reluzente, ele jazia.

Não sei o que tramava,
Indigesto, inútil,
Dentro de mim.
Era grito pras entranhas surdas,
Verso pras analfabetas sensações,
Seta pros meus órgãos cegos,
Conversa pro meu sangue mudo.

E eu, privada dos sentidos,
afogada em incertezas,
Persistindo na decisão tomada
Tomando goles e mais goles de amarguezas. 
Tomada pela certeza fria
Do erro que me entorpecia,
Ruminando e me acostumando
Feito gado no pasto;
Aguardando,  sem saber, sabendo,
Acovardada, acomodada, amedrontada,
Uma felicidade que viria
Mal eu sabia, só com o pó.

Mas aqui dentro?
Por que foi que engoli essa porcaria?
Quando? Como?
De que é que eu fugia?
Recebi esse astrolábio justamente
Pra evitar a perda de tempo
Nas idéias erradas da vida
Nas flores belas fingidas
Nos casebres charmosamente sem teto.
Ele vinha pra lembrar
Que onde não florescer,
Não se deve quedar.

Coração é iletrado, não tem nada
Que ver com astrolábio. 
Coração canta, mas tem que cantar baixinho
Pra não atrapalhar o que se tem que pensar.
Agora, em minhas mãos, retomo a trilha
Tomo garrafadas de persistência,
Coragem e paciência
Pra não desistir no caminho
Até lugares onde eu possa sentir
Onde não precise insistir
Onde simplesmente
Eu mesma seja lar. 

segunda-feira, 30 de abril de 2018

Ainda não sei.
Não sei se, em fim, você será tão somente um mar em ressaca. Não sei se foi um vento forte que passou, fez um baita estrago e também trouxe sensações únicas; e não volta mais. Não sei se você vai ser uma onda que apaga todo um castelo de idéias já construído, toda vez que chega – e chega sempre, e vai, e chega, e vai. E se for a onda, nesse vai-vem, acaba se estruturando como parte indispensável do mar. Não sei, amor, se você vai ser a chuva que chega, molha, limpa e evapora para molhar novas terras. Não sei se vai ser o ar que vou respirar daqui pra frente, pra todo o sempre, ou por algum tempo. Não sei se você foi, se é ou se ainda será. Ainda não sei, meu amor. Ainda não. Porque algo me diz que nem nossa última conversa, terminando todo o nada que temos um com o outro, vai resolver. Ainda temos chão a caminhar, juntos ou não. Só acho que temos muito a viver, juntos. Mas sinto, sinto muito, que não vamos. Mas não sei. Sei lá! Posso estar errada e queria estar. Só espero, mesmo, que o próximo passo que daremos, pra mesma direção ou pra direções opostas, seja guiado por Deus. E que esse fim seja um fim em si mesmo, a nos levar para novas e abençoadas direções.  

14/09/2014

segunda-feira, 16 de abril de 2018


Me envolve a cintura e me agarra, firme.
Sinto você me sentir e morro pro mundo,
por dois segundos.
Suas mãos esquentando cada milímetro
do meu corpo, saliva e sangue.
Sinto suas mãos me sentir.
Meus pêlos, pele e sussurros
respondem em arrepios profundos.
Gritos mudos.

Seu corpo declama entre meus poros
um monólogo que assisto,
calada.
Me tira pra dançar, me toma e me leva.
Continuo a escutar sua voz,
baixinho,
Mesmo dentro de mim,
Contando histórias da mulher que sou
Pra mim mesma.

Ganho, por um segundo, certezas.
Abraçada comigo em minha própria pele,
Cega, o egoísmo me engole.
Não quero nada que não seja por mim.
É o prazer que invade e me torna
Nada mais que instinto.
Meus hormônios se multiplicam, sorrateiros,
Me transformando num mero instrumento
momentaneamente seu.

Na posse dele,
Você cheira e sente meu gosto.
Suas ganas não enganam e sei,
exatamente,
o que quer de mim.
Presa, domesticada, sinto,
só, e sinto.
E sinto você e me sinto
limitada no meu eu mais selvagem, cru.

Seus olhos, seu toque e faro,
Gritam na minha pele, nua,
Meu pódio no mundo de mulheres.
Agora – e só agora, nesse instante,
A segurança me invade.
Sou desejada, cobiçada,
Amada, sentida, afagada,
Me entrego, então.
Vencida na fuga do predador, nu.

-frô-

sexta-feira, 13 de abril de 2018

Se ouso te tocar e vens,
serás, como eu, oscilação.
A referência e a certeza
se esvaem.
Retornas à confusa multidão.
Te revertes em insegurança.
Cai por terra a fortaleza.
O tempo verte, fugaz.

Ah, para! Não estraga!

Afasta e perpetua-te
em mim.






Leo era Bia, em linha reta.
Bia era Leo, em curvas.
Ela, balão; ele, dirigível.
Ela era grito agudo; 
Ele, silêncio expressivo.
Enquanto Bia era livro,
Ele era música.
Enquanto ela era sonhos,
Leo era planos.
Enquanto ela era poesia,
Bom, do seu jeito, Leo também era.

Bia era a mulher que dançava, voava,
corria e ria.
Flutuava, mergulhava.
Bia dava a volta ao mundo,
Enquanto Leo dava a volta em si.
Ele era o homem que sentia os ruídos,
Os sussurros, as conversas, os uivos,
Sentado, quieto, inefável.
Era-se, então, referência para Bia que,
Fixando-se nele, não se perdia.
Leo fazia-se certezas nos devaneios de Bia.

A atração que sentiam não tinha lógica.
Instinto em extinção.

Um tinha o que o outro, 
de algum modo queria.
Não para si, mas para o outro, mesmo.

Acontece... e essa história é real...
Acontece que tudo era só teoria.
Porque aqueles que são opostos, se anulam.
E quanto mais Bia se aproximava de Leo,
E quanto mais Leo a permitia...
E quanto mais Leo se aproximava de Bia,
E quanto mais Bia se permitia...
Ele ia se tornando matéria
E ia se afastando de tudo aquilo que,
Inconscientemente,
O atraía para Bia.
Ela ia tomando forma humana
E ia se afastando de tudo aquilo que,
Conscientemente,
Leo desejaria.

Recebendo do universo o distanciamento,
Imaturo, prematuro, inevitável,
Bia e Leo se aceitavam
Como meros transeuntes
em suas vias.

terça-feira, 10 de abril de 2018

Carta para a Senhora B.

Prezada senhora, que prazer revê-la, depois de quase três anos! Suas asas, como imaginei, tornaram-se iridescentes! Imagino que suas mudas lhe custaram noites de insônia, lágrimas, dores e quase-morte. Imagino como deve ter sido complexo todo o processo.

Infelizmente, tenho que alertá-la que as mudas repetem-se de tempos em tempos. O incômodo poderá se instalar novamente ao longo de sua existência. Mas se tranquilize. Elas são sempre distintas umas das outras e a cada dia nos tornamos mais fortes, aptas a suportá-las.

Coincidentemente, na última semana me deparei com uma carta que você me encaminhou, tempos atrás. Como foi forte sua mensagem. Muito me fez pensar. Se não se lembra, você me descobria e me trazia esperanças de voltar a voar. Tenho muito a contar, mas isso, numa outra ocasião.

Escrevo porque a vi assim, de soslaio porque não tinha certeza de tê-la reconhecido, e me comoveu revê-la tão linda. Linda, mas fragilizada.

Pequena Senhora B., parece-me que não é mais tão inocente. A vida a tem feito.

Mas por que é que a lição sobre o tempo lhe tem sido tão dramática? Sei que na irrigação de suas asas teve muito trabalho. Sei que todo o seu crescimento, todas as mudas, te fizeram agir incessantemente. Mas perceba que, junto de todo esse esforço, teve alguém que nunca a abandonou, que sempre esteve trabalhando ao seu lado, fazendo amadurecer o que devia, morrer o que já não servia, esclarecendo o que precisava de luz, fortalecendo o que estava frágil. Percebe que ele, o Tempo, nunca, nunca te deixou sozinha.

Perceba, querida amiga, o quanto o Tempo é sábio e deve ser querido, desejado, esperado.

Ele seca as flores para que novas nasçam; transforma o que já não mais reluz em adubo; nos ilumina na hora certa, porque só ele conhece as horas do universo. O Tempo, querida borboleta, é mais responsável por suas transformações, do que você.

Sente-se tranquilamente e observe o mundo. Vai perceber que o universo continua, mesmo que você pare. Sua estagnação não é importante para ele. Sinta e aceite o universo ser, com o auxílio do Tempo, este que auxilia a todos os seres, vivos e não vivos. Deixe o tempo agir.

Dizem por ai que a vida é feita de escolhas. Eu sei disso. Todos sabemos. Mas as escolhas também têm tempo certo. Se não estiver preparada para elas, escolherá errado e o Tempo, que não pára, vai parecer descontrolado.

Mas creia: o Tempo não adoece, não enlouquece, não se descontrola, não morre. O Tempo está certo, sempre. Caberá a você, após uma decisão equivocada, fazer o que for possível para recentralizar sua vida, para que você, que adoece, que elouquece e que morre, consiga sobreviver em comunhão com ele.

Esse processo dói, eu bem sei. Dói em nós e dói também em terceiros, afetados por nossas decisões. Por isso entenda: ter calma é mais fácil que o processo de reconstrução, depois das desconstruções tão necessárias, das decisões tomadas fora do tempo.

E já que ainda não cometeu (tantos) abusos, nem pelo excesso nem pela ausência de decisões, receba o conselho desse pássaro que tudo tentou para ver suas asas renovadas e, só agora as vê cicatrizadas, pela singela e eficaz ação do tempo. Rotas – é verdade. Não são mais como antigamente. Não são tão fortes nem tão belas. Mas estão cicatrizadas, graças à ação dele, o Tempo.

Aprendi isso, querida Senhora B., gastando muita, muita energia no impulso incessante de agir, de crer que eu não poderia deixar jamais minha jangada ao sabor do vento. Deve-se lembrar das minhas inúmeras tentativas de colar meus ossos, de regenerá-los. Não percebia, com minha pouca vida, o quanto o senhor Tempo é implacável em seu trabalho, o quanto é sábio e eficaz no serviço de trazer a nós aquilo que precisamos, mesmo à nossa revelia.

Converse com ele, o Tempo. Converse também com o vento, a chuva, o mar, o rio. Nesse diálogo silencioso e sincero, muito se aprende.

Veja quanta coisa, nesses últimos três anos, se aquietou em sua alma, sem que você tivesse que tomar parte, sem que tivesse que empreender longas viagens (externas ou internas, emocionais ou racionais). Aprenda a observar e a esperar. Atenha-se em si mesma.

Quanto às minhas asas, o senhor Tempo as cicatrizou. Aguardo então o vento certo, que me lançará ao alto, permitindo-me dançar entre as nuvens mais uma vez. Mas agora, com o zelo necessário a me distanciar de nuvens densas e não me aproximar tanto do sol.

De sua amiga.

terça-feira, 3 de abril de 2018



A decisão de viajar ao Uruguai foi tomada meses atrás, quando comecei a sentir a já conhecida imensa necessidade de respirar novos ares. Como dizem por ai, dentro de mim “algo errado não estava certo” e meu instinto pedia isolamento e meditação.

Embora tenha convidado algumas amigas, por motivos vários ou por mero capricho do destino, no dia 18 de março desembarquei em Montevidéu, sozinha.

As vésperas da partida foram carregadas de insônia, temor e ansiedade. Era minha primeira viagem só, fora do Brasil.

Como teria somente minha própria companhia, com liberdade e cautela tracei o roteiro solitário. Nele, apenas no último destino, Punta del Este, teria a chance de fazer amigos, me hospedando num hostel estilo “badaladíssimo”.

Ainda que tenha me recebido com dois dias de chuva, Montevidéu foi uma linda amiga. Meu anfitrião disponibilizou seu sofá (couchsurfing) e não me permitiu um único momento de meditação, estando sempre atento, presente e animadíssimo com muita música, cerveja, histórias e lições de espanhol. Os dias corriam rápido com tanta novidade e, no final, fiz amizade com uma brasileira que expulsou qualquer resquício de introspecção. Deixei para buscar a tão almejada solidão no próximo destino.

No único dia em Colônia del Sacramento, me ocupei em conhecer a cidade. Subi o farol e aguardei o pôr-do-sol. Depois de dois minutos entrando em sintonia comigo mesma, com a ajuda da luz que me aquecia a face, um equatoriano se aproximou e terminamos o dia conversando sobre viagens. Projeto meditação mais uma vez adiado.

Mais uma noite de couchsurfing me aguardava. Agora, junto a um casal, com quem conversei sobre costumes e política, comi pizza e aprendi a fazer o mate.

Rumo a Punta del Diablo, paisagem bucólica, praias pouco visitadas e um quarto alugado numa mini-casa em que a proprietária havia me informado que não estaria. Cheguei com a certeza de que teria duas noites de meditação e silêncio, na beira do mar e largada no mato.

Para minha surpresa, contudo, dividi a casinha de um quarto com a amiga da dona e o resultado foi inevitável: muita conversa, risadas, amizade e nada de solidão.

Eu já me angustiava porque não conseguia encontrar a paz que tinha ido buscar. Eu havia viajado para estar isolada, pensar na vida, lidar com minha própria companhia, com o mínimo possível de internet, amigos, gente.

O destino ajudou, me permitindo esquecer o carregador portátil, limitando muito o uso do celular. Mas também não ajudou, dando acesso a internet em todos os lugares onde me hospedei e trazendo, sempre, companhias inesperadas.

Me questionei, então, se o universo estava contra meus objetivos ou se meus objetivos é que estavam contra o universo. Sou bastante petulante, mas dessa vez, não podia medir forças. Meu oponente era muito maior que eu e, em verdade, nunca se opôs a mim. Eu precisava aceitar e refinar minha escuta para ouvir sua voz. Talvez ele, o destino, estivesse dizendo algo diferente do que eu procurava ouvir. O processo de questionamentos estava instaurado. O desenrolar da mensagem viria nos próximos dias.

Naquela noite, desci até o povoado em Punta del Diablo e conheci uma sanduicheria vegetariana. O ambiente era lindo, estilo rústico-chick, com um reggae ao fundo, se misturando ao som das ondas do mar.

A comida encheu os olhos e o apetite. Corri para fotografar. Precisava registrar. Fotografei. Mas a imagem não captava o som, não captava a luz, o frio. Filmei. Ainda não satisfeita, decidi que precisava postar em alguma rede social. Opa! Perai! Precisava postar? Não. Eu não precisava postar. Ou precisava?

Na longa caminhada de volta, pensei. Pensei muito. Que necessidade era aquela de postar minha comida e um momento tão meu? Eu me repreendia rigorosamente, pensando no excesso de exposição tão comum nos dias atuais. Mas dessa afirmativa, veio outra pergunta: por que era tão comum? A resposta mais óbvia seria carência. Mas de que? Sempre carência? Foi então que entendi que essa necessidade que eu sentia era simplesmente humana e suas justificativas poderiam ser das mais diversas.

Percebi que eu não queria "postar". Eu queria "compartilhar". Eu não queria mostrar a comida. Eu queria compartilhar o ambiente, os sons, o momento. Pudera compartilhar os sabores e os aromas. Queria que alguém - qualquer pessoa amiga - conseguisse sentir um pouquinho do meu prazer. Queria que, de algum modo, a foto atingisse alguma lembrança ou a imaginação alheia, para que mesmo longe, experimentassem sensações parecidas, proporcionadas pelos sons, sabores, cheiros, cores. A compreensão inusitada surgia devagar.

Novo destino: Cabo Polônio. Ali, numa reserva ambiental, certamente, teria a paz que precisava e ansiava, embora já questionasse o quão desejava, agora, a solidão.

Como já devia imaginar, nada do que planejei aconteceu. O hostel era bastante familiar e gente que já se conhecia se reencontrava. O clima era demasiado amistoso e eu simplesmente fui tragada por aquela energia. Paguei por uma cama e um café e recebi café, almoço, janta, cerveja, amigos, sorrisos, brincadeiras, músicas, histórias, fogueira, sensações e um céu tão estrelado que nem parecia nosso! Aquelas pessoas me receberam como amiga e comigo compartilharam o que tinham.

Mais uma vez aquela palavra surgia em minha mente: compartilhar.

Me lembrei, em tempo, da resposta recebida do meu anfitrião em Montevidéu, quando convidamos minha nova amiga brasileira para comer uma pizza conosco e eu o “alertei” que eu mal a conhecia: “eu também não te conhecia quando compartilhei com você da minha comida, da minha cerveja, do meu sofá e das chaves da minha casa”. As vozes eclodiam em minha alma.

Partia para meu último destino: Punta del Este.

Havia escolhido um hostel badaladinho porque imaginei que, a essa altura, estaria cansada de ficar sozinha. Como não poderia ser diferente, nada do que planejei aconteceu. O hostel estava vazio e ficava um pouco longe do centro. Fui aos pontos turísticos, caminhei na praia, vi os lobos marinhos. Conheci o incrível Museu Ralli. Visitei a Casapueblo de bicicleta e vivenciei aquele pôr-do-sol tão famoso e único. Tudo sozinha.

Naquele momento, vendo o sol se pondo, fotografei, filmei. Filmei mais. Fotografei mais. Eu suspirava tanto! Cheguei a mandar vídeos para meus pais, tentando transmitir a eles um pouco das sensações maravilhosas. E a poesia nos minutos finais!? Ah, a poesia!

Me lembrei, então, das inúmeras descrições que havia lido na Internet sobre aquele fabuloso evento. Percebi que, mesmo sendo diferente a cada dia, as sensações descritas por tantos viajantes das mais diversas nacionalidades se assemelhavam. Ao descrevê-lo, compartilhávamos o espetáculo do mesmo sol, em seu processo de cair atrás do mar, que se repete há milênios.

Onde eu menos achei que estaria só, onde tinha a maior densidade de gente ao meu redor, encontrei a solidão. A solidão de estar só, de fato. A solidão de sentir-se só, no meio de tantas pessoas. A solidão daquele que vibra, sem ter ninguém para compartilhar, sem ter nenhum cúmplice com quem meus olhos pudessem conversar em silêncio, a quem minha pele pudesse gritar com um toque.

A solidão me visitou, deixando claro que eu me enganava quanto às minhas buscas.

Eu não precisava aprender a ser só; não precisava da solidão para me encontrar. Percebi que nem meu silêncio nem meus gritos interiores me perturbam. Não preciso me isolar para ouvir minha voz e mesmo o meu silêncio é bastante querido. Percebi que lido bem comigo mesma. Eu não me incomodo.

Me acompanhando por alguns poucos mas selecionados instantes, a solidão me abraçou e senti seu perfume doce, aconchegante e tão familiar. Mas o momento, de tão intenso, pedia sua ausência.

Refleti.

Para mim, olhar o espelho era confortável em comparação a me enxergar pelos olhos do outro e enxergar o outro com tudo o que ele é, com meus próprios olhos. Era melhor estar só. Sentir o mundo pela minha pele e comunicar essa leitura ao outro – e receber do outro sua própria leitura era demasiado complexo; era mais fácil estar só.

Melhor e fácil, mas não pleno. A plenitude dos sentidos, dos pensamentos e emoções exigia o compartilhamento. Beber da mesma xícara de café, tomar da mesma garrafa de cerveja, comer da mesma porção, sentir do mesmo aroma, enxergar a mesma paisagem, respirar do mesmo ar – e receber um pouquinho do que experimenta o outro, sem intenções, somente por compartilhar. É quando dois se tornam um; quando se forma um túnel entre humanos. Comungam-se. Associam-se. Unem-se. São cúmplices de um quase segredo; de algo que é só deles involuntariamente, porque só eles experimentaram.

Então, veio uma descarga de alegria. Entendia, na prática, a mensagem do filme “Into the Wild” e que outrora refutava (com minha petulância). Eu vivenciava o que Henry Thoreau tão bem resumiu: “a felicidade só é real quando compartilhada”.

Na minha busca pela solidão, caminhei pela comunhão e encontrei muito mais do que imaginava.

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Ps.: Talvez por tudo que escrevi, a mensagem que quis passar seja tão inacessível e ineficaz quanto tentar descrever o sabor do capuccino tomado no terraço do Museu Casapueblo. Mas não custava tentar.