segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Vejo você sumindo, subindo, faminto de vida. 
Já quis segurar, mas antes mesmo de te apertar entre minhas mãos, 
antes mesmo de tê-lo escapando entre meus dedos, 
soltei. 

Soltei porque nunca tive, na verdade.
Na verdade, ninguém nunca tem.
Soltei porque eu não o queria assim, pela minha gravidade.
Soltei porque você nem percebeu que eu te segurava.


Ainda tenho minhas dúvidas, confesso,
da sua consciência desse universo.
Às vezes, é criança inocente, como noutros tempos.
Outras, é lobo a me dar voltas, a me espreitar.


Sobe! Seja o vento, a fumaça, o ar.
Seja o invisível, o invicto!
Seja o que quer ser e, depois,
volta.


Volta mais forte, mais tenro, sereno.
Volta formado, homem-terra pra se fixar.
Volta o que se tornou e, então,
fica.


(frô)







quarta-feira, 23 de agosto de 2017

✈Sobre viajar...

Comumente pessoas que gostam de viajar associam esse "hábito", paixão ou simples ato, a liberdade.

Liberdade de ir e vir; de não estar preso a lugar algum; de não ter que se enquadrar a nada; de deixar de ser escravo do relógio, da balança, das obrigações e da rotina; de ser do mundo, enquanto o mundo é seu.

Embora eu seja do grupo que não pode ver uma janela aberta que já corre rumo ao céu, a associação do viajar com libertar-se não me é automática.

Liberdade traz uma conotação de ausência de fronteiras, de tudos que se misturam, de partes que se tornam todo. Em verdade, o que sinto me soa o oposto.

Se saio do meu mundo real, com meu lar, trabalho, família, amigos e rotinas, consequentemente  entro no meu mundo íntimo. Minhas paredes se contraem e ocorre uma condensação de mim. Tenho uma noção mais exata da minha pequenez.

Quem já viajou com amigos sabe que nem sempre é fácil. As divergências surgem e os ritmos se descompassam. É o delinear das individualidades dos presentes que, de tão nítidas, incomodam.

Essa é uma das mágicas do viajar: o silencioso encontro com nossas membranas, que separam-nos do mundo e, muitas vezes, dos múltiplos eus.

Nesse (re)encontro, o outro é ninguém menos que você, que é o outro e você mesmo. É o momento em que se pode se ver com maior clareza. O mundo se torna seu espelho.

Talvez ai resida uma vertente da tal liberdade no viajar: ao entrar nesse planeta alheio, abrem-se as portas de todos os eus até então guardados, restritos, oprimidos.

Se se permite aos outros eus existirem, toda a fronteira se torna visível. Um horizonte palpável que merece ser degustado. É doce, às vezes. Mas pode também ser amargo.

Com os pés no mundo, as regras de conduta são  baseadas num arquétipo próprio do viajante. São ideias de sobrevivência, respeito e solidariedade. Só.

O eu que surge vive, então, numa realidade paralela e inventada.

Quem não fuma, pode fumar, se quiser. Pode até estar tentando largar o cigarro há trezentos e vinte e sete anos. Quem é casado, pode decidir ser solteiro. Quem é atoa, pode decidir ser um empresário workhacolic que, durante as férias, não quer falar de trabalho. É só dizer e pá! É. Essa realidade tem tempo e local limitados, facilitando uma existência sem inquisições ou provas. Sem justificativas, sem exigências.

Mas essa liberdade não é eficaz para todos os desejos. Quem é desorganizado vai continuar bagunçado. Quem é alcoólatra não deixará de ser. Quem é amor em casamento, vai se manter intacto. Quem é furacão não vai se tornar brisa. Quem não sabe dançar, vai continuar sem saber.

A regra é clara: do que é superfície, podemos nos libertar, se quisermos. Do que se faz essência, parte de nós, temos duas opções: ou não encaramos e deixamos passar como brisa incolor (e indolor) ou degustamos. Se é brisa, passa. Se é sabor, ou nos apetece ou nos engasga. Ou nos apraz ou nos mata.

Particularmente, prefiro sentir e saborear, ainda que o gosto amargo se impregne nos meus labios. Muitas vezes, sou bem indigesta, aliás. Mas não morrer contaminada por mim mesma é requisito básico para essa reflexão.

Ao viajar, me livrando do que não preciso me torno leve. Por outro lado, tudo aquilo de que não consegui me libertar – e queria, são objetos a serem questionados com calma.

Talvez por isso, de tempos em tempos, sinto uma tremenda vontade de viajar. Talvez desbravar o mundo seja apenas a bandeira que levanto, enquanto penso, cá com meus botões, sobre todas as quimeras íntimas que me convido a enfrentar.  

23.08.17