segunda-feira, 29 de dezembro de 2014


Reflexões de final de ano que poderiam ter ocorrido a qualquer momento mas que, sei lá porquê, aconteceram em dezembro...
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           Essência

Reencontrei alguns parentes. Alguns reencontros de encontros recentes. Outros, antigos. Juntos, aquele arranjo todo, há muito não se repetia.

Em setembro, reencontrei virtualmente um amigo com quem não trocava palavra há quase quinze anos. Hoje, amigo. Há quinze anos atrás, namorado.

A ceia natalina não poderia ser diferente de todos os outros encontros, já quase esquecidos, em que nos firmava como família a saudosa matriarca: leitoa, uma garrava de champagne (pras famílias quem só abrem pra comemorar a data e que, no final da noite, saem recolhendo copos meio cheios pelos cantos), arroz branco, salada e sobremesa.

Com ele, comida chinesa. Ele me buscou e pagou o almoço. Na nossa época, sanduíche, coca-cola, futebol de sabão e cinema. Chegávamos de ônibus ou papai levava. Cada um pagava o seu.

As conversas de sempre, que acontece em toda ceia, pela primeira vez na nossa. O fulano que sofreu nova cirurgia; a sobrinha que descasou; a tia que descansou; o neto que aprontou; o sobrinho que voltou de viagem. Por fim, as lembranças: as conversas em volta do avô, as comidas da avó. As peripécias dos sobrinhos que hoje são tios. As lembranças dos que já se foram. Os nomes esquecidos por tanto tempo, que alguém, no grupo, havia de lembrar.

A troca de experiências, resumidas em poucas palavras cabíveis entre garfadas. Nada de sentimentalismos. Nada de passado. Reticências. Interrogações. Porquês sem respostas ou sequer pronunciados. Algum silêncio. Algum sorriso. Um aperto de mãos. Um olhar amigo.

Os tios continuam os mesmos. O chato continua chato. O engraçado, ainda engraçado. O carinhoso, mais meloso do que nunca. O ranzinza já foi embora, pra variar. A tia que sempre cozinhou chega atrasada na festança porque acabou de sair da cozinha. A outra chega com a panela. As primas com os pratos. Os primos com os copos e as cervejas. A prima continua no espelho. A outra, que levava o mesmo ursinho sujo pra todo canto, reclama do desapego mundano. O primo continua curtindo com a cara de todo mundo e o outro, remendando. Os agregados tentando entender aquele povo que se conhece há milênios. As crianças brincando despreocupadas, netos dos antigos tios.


Eu ali, com ele. Juventudes deixadas. Vida adulta. Responsabilidades, medos, ambições. Eu, querendo falar de vida. Ele, querendo viver. Eu, dando um nó no cérebro, tentando decifrar cada gesto. Ele, observando e achando graça. Perguntei se me reconheceria na rua. Ele respondeu que sim. Eu também, mas ele não me perguntou nada. Eu, me desculpando pela falta de jeito. Ele, sorrindo, tímido, dizendo: “você não mudou nada... nem eu!”



domingo, 28 de dezembro de 2014

Era pra ser

Era pra ser só o que se tinha planejado ser
Mas seu cheiro impregnou nos meus poros
Exalo teu gosto pelas pupilas quando fecho os olhos
Sinto sua pele, sua respiração.
Sinto arrepios como se você estivesse aqui.
Mas você está ai, com ela.
Sei um saber desprezível
Que você não mais vai passar por aqui
E sinto
Sinto saudade de coisas que não vivemos
E prazeres que não sentimos
E gostos que não experimentamos
E, principalmente, das risadas que não demos.
E sinto
Um movimento brusco e gelado
Das minhas entranhas se contraindo
Não há lágrimas porquê não houve tristeza
Não há lembranças porque não existiram fatos
Não há decepções porque não houve expectativa

Não há esperança porque não se pode ter.
(frô)

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

















Não coleciono latas, rótulos, moedas, livros, fotos.
Não coleciono bijuterias, roupas, bolsas, batons.
Não coleciono sequer amigos, nem filhos,
Nem lembranças, nem rancores, nem amores.
Tudo o que me acresce, trago, engulo, permeio, absorvo.
Me compõe como um todo.

Tudo o que não me soma, descarto.

sexta-feira, 28 de novembro de 2014


Deixa ser

A casa desarrumada demonstrava muito mais que sua desorganização espacial, segundo os sábios, donos do óbvio, que diziam refletir sua vida desestruturada: relacionamentos abandonados, discussões deixadas por sorrisos inconclusos, filhos sem pais. Era tão óbvio!
Ela era uma pessoa toda torta: das pernas às atitudes, passando pela boca. Toda desencaixada. A vida parecia patinar feito carro atolado. Os sonhos permaneciam no coração, como que esquecidos. Seu olhar se resumia a desculpar-se por existir.
Num belo dia, tudo deu errado. Perdeu a hora, perdeu a carona, perdeu o caminho, perdeu o vôo e perdeu o amor.
Lindamente, perdeu o óbvio.
A casa desarrumada demonstrava, agora, muito mais que sua desorganização espacial. Era sentar-se no chão, ao lado da cadeira, porque o chão era muito mais confortável. Era olhar a toalha molhada, gostosamente pendurada na maçaneta da porta. Eram seus livros em cima da mesa, porque amanhã teria que tirá-los do armário de novo! Era concentra-se em resgatar seus sonhos dos umbrais do esquecimento e ir substituindo-os à medida em que passavam de fase.
A liberdade da escolha invadiu-lhe tão completamente, que achou bonito até o oposto, porque lhe cabia ser o que era. E aprendeu, perdendo o óbvio, que a singeleza do deixar ser.
Deixa ser bom, sabendo aproveitar. Deixa ser ruim, sofrendo cada dor. Deixa ser desorganizada, com a calcinha em cima da mesa. Deixa ser sistemático, com as camisas do guarda-roupas separadas por cor. Deixa ser gostoso, ainda que fugaz. Deixa ser fugaz, ainda que o final machuque. Deixa machucar e sarar naturalmente. Deixa terminar. Deixa recomeçar. Deixa começar o novo. Deixa doer. Deixa amar, ainda que não seja verdade. Deixa trair, se é necessidade. Deixa beber, se vai fazê-la bem, ou mesmo que lhe faça mal. Deixa nascer e deixa morrer. Deixa comer, mesmo que se queime de arrependimento. Deixe inconclusas as discussões, se assim lhe apetecer. Deixe-se abandonar e ser abandonado, quando não houver mais prazer. Deixa ser, porque deixando, sempre se estará do lado certo. Deixa ser, porque é tão lindo ser! E, principalmente, deixa ser, porque deixando ou não... vai ser. 

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Ela corria num ritmo calculado, para que ficasse sempre no meio das demais competidoras, sem que tivesse toda a sua força exaurida antes do término da corrida.

Suas pernas musculosas suportavam as pancadas do chão. Seus ossos preparados lhe davam a sustentação necessária. Seu corpo estava totalmente preparado para suportar toda a maratona.

A beleza parecia correr-lhe pelas veias. Embora nem sempre tivesse sido assim, sua maturidade lhe trazia também um brilho inesperado. Os sulcos ainda não se haviam cravado na testa nem nas maçãs e o olhar estava mais reluzente do que nunca.

Alguns, admirados, confundiam seus olhos fatigados com olhos sonhadores. Pouco sonhavam, pouco enxergavam, os olhos na verdade neutralizados.

Por já não querer provar nada pra ninguém, por já não querer convencer ninguém de nada, sua companhia tornara-se mais que suportável; talvez agradável. Sim, era bastante razoável a confusão de olhos.

Por ela passavam amores, quase amores e desamores; sabores e dissabores, enquanto continuava a correr. Seu corpo estava preparado para suportar o ar rarefeito, queimado pelo sol junto com o solado do tênis que ia ficando, passada após passada, no asfalto.

Derretia a borracha e derretia a alma, em forma de suor. A transpiração a secava. Cada gota salgada dos poros, que se misturava com toda gota salgada dos olhos, a secava. A cada gota que caía, chegava mais próxima do chão ela, também.

Uma boa alma, talvez paga surpresa, entregou-lhe um copo d’água, aberto. Ela corria sem parar e, sem parar, despejou a água na face, no corpo e no peito, fechado.

Uma boa alma, talvez pega de surpresa, se destacou entre tantas almas aos olhos dela, certamente pega de surpresa. Ela, correndo, fitou. Os olhos se encontraram mas, correndo, se distanciaram.

A maratona ainda estava na metade. De desistir, tinha sim, tinha vontade. Suas costas não se cobriam somente pela fina malha enumerada. Outras camadas densas invisíveis e pesadas a obrigavam a, disfarçadamente, se curvar. Ninguém notava. Precisava da medalha de participação, precisava concluir a prova.

Sua beleza não lhe servia para aliviar a corrida; seu físico era só a sustentação. Corria, displicente. A beleza das ruas não mais a distraía. Nem a beleza, nem a sujeira. Nem a gritarias das multidões, nem o ruflar das asas do pássaro que a sobrevoava. Queria ela também voar.

Voar ainda com as camadas nas costas. O ar, também invisível, a ajudaria. Voaria sem deixar nada, nem rastro, nem ódios, nem amores, nem dores, nem sonhos, nem frustrações, nem reclamações. Não ousava, aliás, reclamar. Seu suspiro era nada mais que um renovar de ares dentro dos pulmões. Oxigenava seu sangue, suspirando. E mais uma vez, o ar provava que estava ao seu lado.


A maratona terminaria, em fim, um dia. Um dia, voaria. Pra bem alto, pra bem longe.        
Na certeza do sucesso,
Errei.
Logrei êxito no objetivo almejado,
Errei por convicção.
Errei no ponto exato,
conforme planejado.

Me desfiz em milhões de pedaços,
Sem compaixão,
Me desconstruí.

Fisicamente,
Espiritualmente,
Moralmente,
Pessoalmente,
Mentalmente,
Emocionalmente,
Civilmente,
Criminalmente,
Ideologicamente.

Me limpei de mim mesma.
Me acabei,

Me sorri.

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Extrema.
Sim ou não. Tudo ou nada.
Santa ou diaba. Leve ou imersa. Fiel,
Ou a própria tentação.

Intensa.
Não só esquenta; queima. Não só cínica; dissimulada.
Não otimista; certa. Sem pés, mas asas.

Envolta em revolta, dona de si.
Sou eu, meu começo, meu meio e meu fim
Em mim mesma.

Até que...

Chega alguém...

E eu...

Eu perco o dona, perco o si...

Sou qualquer coisa, sou ninguém, alguém,  sou nada.

Um nada que é não é que é sim,
que é tudo, afogada e alada.
Santa e diaba, leve, fiel e tentada.

Soneto do (não) amor

Como pode um amor tão comovente,
Raro, convincente e inexplicável,
Que ama e desama tanta gente?

E mesmo com tudo perfeitinho,
Simplesmente não avança.
Frágil, feito balão, voa alto.
E feito balão, também, estoura fácil.

Como pode um amor tão envolvente
Que ama, cômodo e plenamente,
Noutro dia, indiferente, inexiste.

É real e verdadeiro,
Denso e passageiro.
É amor, inconteste,
Ou qualquer coisa do gênero...

domingo, 14 de setembro de 2014


As raízes vão atingindo profundezas inimagináveis
Esbarram em pedras, torrões...
mas os rodeiam, sem hesitação.
E o tempo la em cima vai mudando,
Sol, vento, granizo, tempestade,
E a intempérie mais brusca,
Causa hoje um sacolejo.
Só.
E mais uma vez a natureza prova
Que raízes profundas
Nos tornam donos de nós mesmos.

quinta-feira, 31 de julho de 2014

Eis a menina
da boca torta
Menos menina
Um pouco mais rota
Um pouco antiga...
Mas sempre
Tão ela
Que chega dói.
Sendo o que foi
É o que nunca
Depois de uma volta
Sendo outrem
Antes que tarde
Se toma de volta
Sendo o que é
E jamais deixou de ser.


(autoretrato - frô)

sábado, 26 de julho de 2014

Mais um. Meias e poucas peças de roupas nas mãos. Puxou a porta entreaberta e saiu, silencioso. Na sala escura, apenas o abajur. Agarrou seus sapatos. Seu cinto. Abotoando a camisa, pegou as chaves. Puxou a maçaneta e dobrou o corredor.

Mais um. Chinelos nos pés e bermuda ainda aberta. Puxou a porta entreaberta e saiu, silencioso. Na sala escura, apenas o abajur. Chaves nas mãos. Puxou a maçaneta e dobrou o corredor.

Mais um. Um lençol envolvendo seu corpo. Puxou a porta entreaberta e saiu, silencioso. Esbarrou no sofá da sala escura, iluminada pela luz fraca do abajur. Tropeçou num monte de roupas. Vestiu as calças. Mãos cheias de panos. Puxou a maçaneta e dobrou o corredor.

O primeiro era contabilista. Havia acabado de sair do escritório quando ela ligou, convidando-o para terminarem a tarde com um chopp. Ele gostava de chopp. Ela sabia. Ele morava com os pais e era solteiro. Havia terminado um relacionamento há cerca de três meses e estava na fase de conhecer pessoas. Ele gostava de massas com molho branco. Gostava de Petit Gateau. Ouvia Raul Seixas e se lembrava nostalgicamente de sua época de juventude. Agora, aproximando-se dos quarenta, sentia que precisaria crescer. Não frequentava terapia, mas tinha uma amiga com quem mantinha longas conversas pelo whatsapp. Sempre que um dos dois precisava. Tinham a segurança de que o outro estaria a disposição, para fazer as vezes do terapeuta que diz o que precisa ser dito, chamando de filho da puta quando necessário. Tinha medo do escuro e sempre deixava um fiasco de luz passar pela porta ou pela janela. Dizia que a pouca luz fazia o charme ambiente. Mentira. Era medo. Medo do desconhecido que morava na escuridão. Dependendo da situação, era pavor. Isso tudo porque, ainda na pré-adolescência, os amigos aprontaram uma brincadeira de mau gosto, no escuro. Não esquecera jamais das mãos, pés, braços.

Mas tudo isso não fazia sentindo pra ela. Um mundo que ela jamais conheceu e jamais conheceria. Ele dobrou o corredor.

O outro terminara recentemente a faculdade de medicina. Tinha competência, mas por enquanto, preferia os chinelos. Não morava com os pais; os pais é que moravam com ele. Gostava de filmes. Ação, ficção, romance, comédia, cult, terror, suspense. Não gostava de drama. Bastava sua mente dramática, que se assemelhava a uma esponja que se retorcia.

Também nada disso fazia sentido pra ela. Mais um mundo que jamais conheceu e jamais conheceria.  Virou a esquina.

Todos os outros tinham sua história; seu mundo; seus pensamentos...


quarta-feira, 28 de maio de 2014


E nada nela era assim tão belo,
Assim tão sereno nem tampouco ameno.
Da perfeição estava longe.
E do comum, mais longe ainda.
Mas sempre que ela atravessavam
A olhavam
E olhavam.

Era ela duma intensidade radiante
Inventada a tinta e pena.
Fugiam-lhes gotículas dos poros, ofuscantes.
Que doía n´alma de quem as fitava.
Sem vergonha, sorriso nos olhos,
Metia no bolso toda a gente,
Ou as guardava na palma da mão.

Inexplicável, diriam.
Mas nem era!
É que a vida que cabia nela
Nem no mundo inteiro cabia.

(frô)

sábado, 18 de janeiro de 2014


Ana corria. Corria sem parar, sem pestanejar, sem hesitar. E todas as vezes que via José, corria ainda mais e mais e mais. Não queria encontrá-lo, ali, de pé, pronto para ela. E então, ao vê-lo, corria, como um fugitivo da própria felicidade.
Sabia que ali, naquela situação, naquela esquina, naquele momento, morava seu grande sonho oculto até de si mesma. Não ousava pronunciar o quão desejava, intimamente, a situação. Não ousava sequer pronunciar em pensamento. As palavras eram mentalmente substituídas por fitas brancas, de paz.
Mas José insistia em aparecer, vez ou outra, em sua vida. Usava caras e linguajar diferentes. Às vezes, usava outra alma. Outro nome, sempre. Sempre ressurgia, após cada fuga de Ana, em pé, à sua frente, pronto para realizar seu mais íntimo desejo.
Ao vê-lo, Ana corria. Sabia que o risco de cair seca ao lado de José era muito maior - e pior - que o de ser vista como uma louca, por correr contra seu próprio sonho. Mas a queda ao seu lado seria certa... e dolorosa. Dolorosa ao ponto de ser-lhe quebrados os ossos. E Ana não sabia se seus ossos eram realmente frágeis ou se apenas os sentia frios. A ardência da pele, a dor da carne poderiam ser suportáveis. Mas a quebra dos ossos talvez os levasse ao esfarelamento irreparável. Não podia correr esse risco. Podia viver sem a realização de seu sonho. Não sabia até quando, mas por enquanto, era possível. Preferia, portanto.
E eis que José mais uma vez a esperava, ao lado do poste, na esquina que antes mesmo de nascer haviam marcado.

Ao vê-lo, Ana parou. Girou sobre o calcanhar e disfarçou, como quem acaba de se lembrar de algo que esqueceu para trás - esquecera seu medo quando partiu e voltava para buscá-lo. Correu, então, na direção oposta.