sexta-feira, 28 de maio de 2010

A pausa cheia do eterno

Sentou-se à mesa. Papel deitado, lápis na mão fazendo tec-tec na madeira. Às suas costas, o relógio: tic-tac. Na cabeça, tic-tac-tec-tec-tic-tec-tac...

Imprudente, pensava.

Naquele momento, com a ponta afiada do lápis, perfuraria o balão que levava seus sonhos.

Fechou os olhos e fez uma pequena oração: “Deus, me perdoe... ou o atrevimento... ou a lágrima...”
Ana lembrou de seu sorriso, seu olhar, e escolheu: “Deus, me perdoe pela ousadia...”
Os traços apareciam no papel, decididos e eloqüentes. Tic-tac.

Desenhava. Pensava. Tec-tec.
Terminou sua arte.

Insegura, lavou seu rosto com água fria. “Deus, me dê coragem...”
Tic-tac.
Se atreveu.
“Pedi, e obtereis”.

Mal sabia Ana o quanto ousara ao pedir.

Do outro lado da parede, José sentiu frio.
Ligou o chuveiro. A água gelada queimava sua pele. Uma nuvem morna surgiu.
Tic-tac.

Os traços de Ana sobressaíam do papel. Volitavam por entre seus neurônios, por entre suas veias, por entre seus dedos. Tremia. Tec-tec. Faziam curvas no tempo e no espaço onde as almas costumam se encontrar.

José pressentia. Fitava o espelho, desconfiado. Era nova, essa coisa de pressentir. Mas sentia o porvir.
Não compreendia, mas sentia. Tic-tac.

Fechou os olhos e fez uma pequena oração. O cheiro etéreo era absorvido pelos poros da pele pura, nua. A carne macia, a tez delicada de Ana. O sangue quente. “Deus!”

O dia, a noite, o tempo, Deus e José testemunharam a ousadia da flor mais perfumada da face da terra. Daquele momento, pra ele. Naquele segundo, a cor do mundo. Naquele mundo, tec-tec.

O lápis caindo de sua mão. Tec.
Ana não traçava.
Ana não precisava.
Tinha José,
em seu balão,
tic...

sábado, 22 de maio de 2010

Meu Assassinato ( ou Meu Suicídio, ou Por Mim)














A noite aparece e o sono se esconde.
Dupla faz perfeito cenário, clima.

Revejo programação:
O comprimido, a água, o relógio.

Consigo fechar os olhos e pensar.
Repenso.
Lembro.
Relembro.

Me assassinar.

Pela manhã, ainda,
o primeiro passo.

E nunca mais terei que enxergar
o centro, epicentro, olho.

Até quando eu quiser.
E se...
mas...
querer tarde demais...

Vôo. Volvo. Volto.

Caminhei toda a minha vida
e cheguei aqui.
E chega.
Vida não minha. Não mais minha.
Nunca minha. Não eu.

Um gole, um sorvo.
Um peito comprimido.
Um tempo.

(frô)

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Tentação

Clarice Lispector



               Ela estava com soluço. E como se não bastasse a claridade das duas horas, ela era ruiva. 
   Na rua vazia as pedras vibravam de calor - a cabeça da menina flamejava. Sentada nos degraus de sua casa, ela suportava. Ninguém na rua, só uma pessoa esperando inutilmente no ponto do bonde. E como se não bastasse seu olhar submisso e paciente, o soluço a interrompia de momento a momento, abalando o queixo que se apoiava conformado na mão. Que fazer de uma menina ruiva com soluço? Olhamo-nos sem palavras, desalento contra desalento. Na rua deserta nenhum sinal de bonde. Numa terra de morenos, ser ruivo era uma revolta involuntária. Que importava se num dia futuro sua marca ia fazê-la erguer insolente uma cabeça de mulher? Por enquanto ela estava sentada num degrau faiscante da porta, às duas horas. O que a salvava era uma bolsa velha de senhora, com alça partida. Segurava-a com um amor conjugal já habituado, apertando-a contra os joelhos.
   Foi quando se aproximou a sua outra metade neste mundo, um irmão em Grajaú. A possibilidade de comunicação surgiu no ângulo quente da esquina, acompanhando uma senhora, e encarnada na figura de um cão. Era um basset lindo e miserável, doce sob a sua fatalidade. Era um basset ruivo.
   Lá vinha ele trotando, à frente de sua dona, arrastando seu comprimento. Desprevenido, acostumado, cachorro.
   A menina abriu os olhos pasmada. Suavemente avisado, o cachorro estacou diante dela. Sua língua vibrava. Ambos se olhavam.
    Entre tantos seres que estão prontos para se tornarem donos de outro ser, lá estava a menina que viera ao mundo para ter aquele cachorro. Ele fremia suavemente, sem latir. Ela olhava-o sob os cabelos, fascinada, séria. Quanto tempo se passava? Um grande soluço sacudiu-a desafinado. Ele nem sequer tremeu. Também ela passou por cima do soluço e continuou a fitá-lo.
    Os pêlos de ambos eram curtos, vermelhos.
   Que foi que se disseram? Não se sabe. Sabe-se apenas que se comunicaram rapidamente, pois não havia tempo. Sabe-se também que sem falar eles se pediam. Pediam-se com urgência, com encabulamento, surpreendidos.
   No meio de tanta vaga impossibilidade e de tanto sol, ali estava a solução para a criança vermelha. E no meio de tantas ruas a serem trotadas, de tantos cães maiores, de tantos esgotos secos - lá estava uma menina, como se fora carne de sua ruiva carne. Eles se fitavam profundos, entregues, ausentes de Grajaú. Mais um instante e o suspenso sonho se quebraria, cedendo talvez à gravidade com que se pediam.
   Mas ambos eram comprometidos.
   Ela com sua infância impossível, o centro da inocência que só se abriria quando ela fosse uma mulher. Ele, com sua natureza aprisionada.
   A dona esperava impaciente sob o guarda-sol. O basset ruivo afinal despregou-se da menina e saiu sonâmbulo. Ela ficou espantada, com o acontecimento nas mãos, numa mudez que nem pai nem mãe compreenderiam. Acompanhou-o com olhos pretos que mal acreditavam, debruçada sobre a bolsa e os joelhos, até vê-la dobrar a outra esquina.
   Mas ele foi mais forte que ela. Nem uma só vez olhou para trás
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Conto extraído de LISPECTOR, Clarice. A legião estrangeira. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Sina


A sina que os aguarda, não é chacina.
A sina que os aguarda, não guarda.
A sina que os espera, não prospera.
Porque sina, sina, sina,
assassina a vontade de vida,
de fazer diferente.
A sina, esqueça.
Sua vida,
você
assina.

15.05.2010
ass.: um amigo.

domingo, 9 de maio de 2010

Foi-se

Eis que exsurge o desespero
da espera infinita e
inacabada.

D´angústia emerge o nevoeiro
do eterno dia inerte
que se acaba.

Findo prazo, hora certa.
Reencontro, passagem.
Mais um segundo,
clama, suplica, roga.

Nada feito, feito nada.
Sua frio, sela a vida.
Sua falta, sente o sopro,
Foi-se alma.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

TERESA

Manuel Bandeira

A primeira vez que vi Teresa

Achei que ela tinha pernas estúpidas
Achei também que a cara parecia uma perna

Quando vi Teresa de novo
Achei que os olhos eram muito mais velhos que o resto do corpo
(Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do corpo nascesse)

Da terceira vez não vi mais nada
Os céus se misturaram com a terra
E o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas.

Eu queria trazer-te uns versos muito lindos

Mario Quintana


Eu queria trazer-te uns versos muito lindos
colhidos no mais íntimo de mim...
Suas palavras
seriam as mais simples do mundo,
porém não sei que luz as iluminaria
que terias de fechar teus olhos para as ouvir...
Sim! Uma luz que viria de dentro delas,
como essa que acende inesperadas cores
nas lanternas chinesas de papel!
Trago-te palavras, apenas... e que estão escritas
do lado de fora do papel... Não sei, eu nunca soube o que dizer-te
e este poema vai morrendo, ardente e puro, ao vento
da Poesia...
como uma pobre lanterna que incendiou!


Imagem e texto extraidos do site:http://www.releituras.com/i_manih_mquintana.asp

Madrigal Melancólico

Manuel BandeirA


O que eu adoro em ti,
Não é a tua beleza.
A beleza, é em nós que ela existe.

A beleza é um conceito.
E a beleza é triste.
Não é triste em si,
Mas pelo que há nela de fragilidade e de incerteza.

O que eu adoro em ti,
Não é a tua inteligência.
Não é o teu espírito sutil,
Tão ágil, tão luminoso,
- Ave solta no céu matinal da montanha.

Nem a tua ciência
Do coração dos homens e das coisas.
O que eu adoro em ti,
Não é a tua graça musical,
Sucessiva e renovada a cada momento,
Graça aérea como o teu próprio pensamento,
Graça que perturba e que satisfaz.

O que eu adoro em ti,
Não é a mãe que já perdi.
Não é a irmã que já perdi.
E meu pai.

O que eu adoro em tua natureza,
Não é o profundo instinto maternal
Em teu flanco aberto como uma ferida.
Nem a tua pureza. Nem a tua impureza.
O que eu adoro em ti - lastima-me e consola-me!

O que eu adoro em ti, é a vida.

domingo, 2 de maio de 2010

Dói










Antes de tudo, te amar é dolorido.
Porque é amor de quem não vive
e amor de quem não morre.
É amor estagnado,
enquanto todo mundo está
no mundo que gira, girando.

Depois de tudo, te amar é compaixão,
é permitir o romantismo, o sonho vão.
É escrever poesia sofrida,
é sentir a presença da falta,
é chegar ao cúmulo
de lembrar da poesia esquecida.

Enfim, te amar é viver vida,
que ainda que não vivida, é vida.
É pisar descalço no espinho, pegar sereno,
é roer unha, prender o cabelo.
É dia que passa todo só na cabeça.
É viver sozinha em pensamento.

Amo...
e te amar me faz bem...
porque amo te amar...
ainda que só...
no fundo da noite
e no escuro do peito.