sexta-feira, 6 de março de 2015

(Sem ilustração - o desconhecido é inilustrável)

Um fora indelével

O conheci por ai. Gostei do seu jeito e, porque não um encontro, uma cerveja numa mesa de bar!?
Gostei do que vi. Risos, teorias, histórias, sonhos, relatos, discussões, planos pro próximo encontro: um cinema, talvez!?
Repentinamente, um fora. "Nosso cinema não vai rolar.."..
A frase soara estranha. Mais correta seria se se dissesse que o cinema não ia rolar ou então que nosso cinema não ia ser nosso. Mas se era nosso, como não!?"
Ante a declaração seca, não pude lutar pelo meu suposto direito a um filme, devidamente bem acompanhada. "Ok", respondi. Todavia, minha curiosa alma feminina não suportou o silêncio. Na voz mais suave que encontrei em meu desafiado e enxotado ser, soltei: "Fiz algo que você não gostou?" e ele me respondeu: "Você me trouxe lembranças..."
A resposta me soou justa, embora não a compreendesse. Eu não tinha subsídios para tanto. E se não a compreendia, tampouco a questionaria, a negaria, relutaria, insistiria. Eu não tinha mais o que perguntar, o que dizer, argumentar ou o que comentar. Naquele momento, me senti incapacitada até mesmo para ter qualquer pensamento sobre o "toco". Decidi esquecer. Sempre fui boa nisso.
Alguns meses se passaram e então ousei recordar. Aquele “fora” se transmutou numa lembrança indelével. Uma lembrança de um momento em que eu trazia lembranças que não eram minhas, relacionadas a pessoas que eu não conhecia.
A resposta àquela pergunta primária – “Fiz algo que você não gostou?” – poderia ter se resumido a um “não”. Eu não havia feito nada. Mas a verdade é que sim; eu carregara comigo algo que não era meu, nunca foi meu. Me senti um tanto torpe, fraudelenta. Uma ladra de sentimentos e sensações que eu sequer sabia o que eram. Eu furtara uma caixinha de lembranças de alguém que não conhecia, sem ter a mínima ideia do que carregava e ainda menos do seu valor. Me senti um tanto Amélie Poulain, com uma caixa de lembranças nas mãos. Só que a minha (tão minha quanto era de Amélie, sua caixa), era lacrada pela cola da ignorância.
Então entendi que ele, o dono, fizera questão de me explicar que eu lhe trazia lembranças, como forma de punição pela minha audácia, irresponsabilidade e culpa por carregar tão desavergonhadamente algo que não me pertencia.
Me senti no ímpeto, então, de me afundar nas especulações. Me permitiria um afogamento sumário num mundo de suposições.
Que tipo de lembranças um ser alheio é capaz de produzir? Não. Não se produziria; se resgataria. Que lembranças são essas, incômodas, doloridas, fugidias? Me permiti pensar, sonhar, imaginar.
Seriam essas lembranças doces, salgadas, azedas? Agridoces, feito molho chinês que deixa criança satisfeita? Seriam perfumadas, com cheiro de flor ou com cheiro de mar? Seriam azuis, púrpuras, furta-cor ou monocromáticas? Seriam foscas ou fluorescentes? Quentes, frias, dormentes?
De toda forma, não sou responsável por elas, mas as trago em mim. Lembranças de gentes que não conheço, que não me permitiram conhecer. Lembranças produzidas por quem nem imagino o sexo. Talvez sejam anjos, talvez demônios. Talvez sequer existam mais.
Senti então meu íntimo cheio de vidas alheias. Lembranças que não tenho, mas carrego na pele, no meu sorriso torto, tão meu que lembra outras pessoas.
Não entendo e nunca vou entender. Nunca vão me explicar, nunca vou perguntar. Minha missão foi apenas essa: carregar as lembranças deles.
Sinto o desprezo, que não é meu. Não sinto mais a sensação do despeito, da exclusão. Sinto, de outra sorte, a perenidade, característica de toda lembrança.
Ela se personificara em mim. Eu me transfigurara nela. Duas desconhecidas, eu e ela. Eu era ela. Talvez ainda seja.
(frô)

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