quarta-feira, 24 de agosto de 2016



José vestiu-se rapidamente. Olhou para Ana, que ainda dormia. Aproximou-se de seu corpo e sentiu seu cheiro. Um perfume suave que lembrava terra e ar. Lembrava abrigo mas, antes, perigo. Ali estava absolutamente tudo o que José temia e evitava. Estava tudo o que José desejava e aceitara. Sabia que a reciprocidade era certa, mas faltava a cumplicidade. Ana já estava resolvida com seus limites intransponíveis. O desejava e o amava, mas acima disso, o temia e o evitava. José, então, afastou-se silenciosamente. Era o melhor a fazer. Era o que lhe restava. 

Desperta pelo tempo, Ana abriu os olhos. Percebendo a ausência de José, procurou ao redor, confirmando que ele já não se encontrava. Vestiu-se com a calma de quem não compreende o que se passa. Antes de sair, porém, deparou-se com um espelho. Seus cabelos estavam cumpridos e seus olhos, fundos, profundos. Não sabia quanto tempo havia se passado. Lembrava-se de José e se perguntava porque não a acordara. Nada havia o que fazer naquele quarto. Ganhou a rua.

Os primeiros cinco metros foram conquistados com facilidade. Avançando, perdeu os sentidos. Abaixou-se e inspirou todo o ar que lhe cabia. Um vento gelado afagou-lhe o rosto. Pés no chão, sentia-se volitar e isso a incomodava. Tentava caminhar, mas parecia flutuar. O ar dos pulmões desapareceu e na multidão buscou ajuda. Do outro lado da rua, seus olhos pararam numa silhueta conhecida. O olhar era amistoso e o sorriso, radiante, embora não a visse. Gritou o nome que lhe veio à mente, mas ele não ouviu. Antes, continuou caminhando na direção oposta. Ana gritou mais alto. José continuou seu caminhar. 

Juntando as forças que lhe restavam, equilibrando-se sobre o chão que não sentia, Ana levantou-se e caminhou para alcança-lo, pela calçada oposta, chamando seu nome. José continuava com seu andar tranquilo, sem nada escutar. Ana percebeu que, pela distância em que se encontravam, ele não a ouviria. Cogitou atravessar a rua, mas seus pés estavam inseguros, tanto pela sensação de volitação quanto pela indecisão.

José entrou numa loja de flores. Ana o observava e pensava que talvez fosse a hora de o alcançar. Colocou o primeiro pé no asfalto quente, e entre um carro e outro, ganhava centímetro a centímetro. Parou, ao perceber que José saia da loja com uma única rosa nas mãos.

Um carro que vinha a toda velocidade deparou-se com o corpo frágil de Ana. Os pneus deixaram marcas no asfalto.

Voltando-se para o estridente som da parada brusca, José viu Ana de pé, paralisada, vestido tocando o para-choques do carro, fitando-o desesperadamente. Trêmulo, ele correu em sua direção. Segurou sua mão delicadamente e delicadamente respirou seu ar. A cumplicidade que lhes faltava dançava entre seus poros.

Suas mãos devolveram a Ana o caminhar seguro e, juntos, silenciosamente, percorreram o resto do percurso que um dia haviam planejado.

Não se contou o tempo ou o espaço que os separaram. Sabe-se apenas que foi o suficiente para tornar suas mãos tenazes o bastante para enfrentarem juntos todas as intempéries, conquistas, lágrimas, aventuras e felicidade vindouras.  

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